::: Lendo Finnegans Wake, de James Joyce. Lendo Finnicius Revém (cinco volumes, alguns dos quais esgotados, ed. Ateliê), a tradução de Donaldo Schüler. Lendo, lendo, lendo.
::: A História como um pesadelo cíclico, confirmado pela própria estrutura do romance, um círculo completo que anoitece e amanhece conforme (ainda que disformemente) as quatro idades viconianas: teocrática, aristocrática, democrática e caótica (ricorso, entremeios, período entre uma e outra idades). As idades se sucedem; o ciclo é interminável.
::: Além de Vico, a leitura do ensaio “O Conceito de História — Antigo e Moderno”, de Hannah Arendt (encontrável neste volume) talvez nos valha de alguma coisa. Cito ao arrepio do contexto original; furto-lhe o sentido, mas não o espírito (p. 71):
Sem dúvida essa eterna repetição ‘é a aproximação mais íntima possível de um mundo do devir do ser’ (Nietzsche, Wille zur Macht), mas, evidentemente, ela não imortaliza homens individuais; ao contrário, incrustada em um cosmo em que todas as coisas eram mortais, foi a mortalidade que se tornou a marca distintiva da existência humana.
::: No Finnegans Wake, a vida é celebrada em negativo, na medida (e porque) personagens, autor e leitores caem e morrem e se levantam, não raro transmudados em outrem. Mutabilidade proteica; vida. A face noturna do passeio diurno e das reflexões de Dedalus pela praia no terceiro capítulo do Ulysses. Mas, no lugar da reflexão racional, de cunho aristotélico-tomístico, o sonho desvairado. O sonho como celebração ébria, noturna, alimentada desde a ambiguidade do título: velório de Finnegan (Finnegan’s Wake), despertar dos (sic) Finnegan (Finnegans Wake). Morte em/para mim, ressurreição em/para outrem. Ciclo infindável.
::: A narrativa primeiro se verticaliza: há um mergulho, a Queda primeira (bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntro- varrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!) que reverbera/engendra outras quedas (do pedreiro Finnegan, de Adão lang time agone, in an auldstane eld, de Lúcifer, de Roma, minha, sua). A Queda é recurso com o qual Joyce ilumina o ricorso e deita um mundo onírico de entremeios onde tudo é presentificável — as idades não se sucedem, mas (con)correm simultaneamente: riverrun. Ou seja, depois de se verticalizar (Well, Him a being so on the flounder of his bulk like an overgroun babeling…), o romance se horizontaliza, espraia-se, prenhe.
::: Muitos falam do conflito simbolizado pelas polaridades que animam a (sim) narrativa (Humphrey Chimpden Earwicker/HCE – Anna Livia Plurabelle; os filhos destes: Jerry/Shem) – Kevin/Shaun), mas, antes de investir em uma leitura contaminada pelo particípio passado de confligere (“bater junto, estar em desavença”), prefiro me sentar ao balcão da taverna de Earwicker, ignorar a boataria que lhe desgraça a vida, dar uma boa olhada na corcova do infeliz e retroceder à ideia de uma (con)corrente, presentificada pelo próprio livro e navegável por todos em simultaneidade — Here Comes Everybody, afinal.
::: HCE é o protagonista antagonizado pelo próprio narrador (um dos), talvez contaminado pela boataria supracitada. O incidente é obscuro. Phoenix Park, duas moçoilas urinando atrás de uma moita e, segundo testemunhas (bêbadas), nosso herói se aproxima e expõe suas partes para elas. Em função disso, do suposto exibicionismo, ele é despedaçado pelo populacho. Um cidadão misterioso (decaído?) (decaídos somos todos) o aborda, pergunta as horas. Em vez de responder, ele tartamudeia, procura justificar-se. O cidadão comenta com a esposa. A esposa segreda ao padre. O padre diz algo a respeito nas corridas. A boataria rende uma balada por obra e graça de um certo Husty (And around the lawn the rann it rann and this is the rann that Hosty made). Depois de espiar as moças, o bode Humphrey expia a culpa de todos:
And not all the king’s men nor his horses
Will resurrect his corpus
For there’s no true spell in Connacht or hell
(bis) That’s able to raise a Cain
::: A palavra põe e dispõe, e também anula para depois reviver. Seja palavra erudita, seja palavra vulgar. Não importa. Joyce se ocupa de todas. Sigo com a leitura. Sou mais um homem que a caminho está.