Resenha publicada no Estadão em 16.04.2014.
Antes de abordar Finn’s Hotel, e até para esclarecermos seu título, falemos um pouco sobre Nora Barnacle, a moça de Galway que fugiu de casa depois de levar uma surra de um tio, pois teria se engraçado com um rapaz protestante. Ela arranjou trabalho como camareira no Finn’s Hotel, em Dublin. Tinha vinte anos de idade. No dia 10 de junho de 1904, quando descia a Nassau Street com seus sapatos rasgados, esbarrou no dublinense James Joyce, nos seus vinte e dois anos. Papearam um pouco; ele foi fisgado. Veio, então, a noite de 16 de junho, quando as carícias dela (não chegaram às vias de fato na ocasião) teriam “feito dele um homem”. Não por acaso, o Ulysses é situado em 16 de junho de 1904 (e na madrugada seguinte). Nora passou o resto da vida com Joyce, boa parte dela no exílio, Trieste, Zurique, Paris, e eles tiveram um casal de filhos. Uma vida repleta de dificuldades, em que a única coisa estável parecia ser a entrega irresoluta dele ao trabalho.
Os frutos desse trabalho estão entre os mais geniais já produzidos em literatura e encerram uma complexidade crescente, desde, por exemplo, os contos de Dublinenses até o Finnegans Wake, passando por Um Retrato do Artista Quando Jovem e, claro, pelo Ulysses. Qualquer tentativa de abarcar uma obra tão monumental restaria incompleta, mas Joyce poderia ser descrito como uma espécie de besta mitológica que se alimentasse de Dublin e da Irlanda para gestar, literariamente, um outro país. E não foram gestações simples, pelo contrário: antes do Retrato, por exemplo, temos Stephen Herói; antes do Ulysses, há Giacomo Joyce; e, finalmente, antes do Finnegans Wake, eis que nos aparece Finn’s Hotel.
Os dez episódios editados sob o título Finn’s Hotel pelo scholar Danis Rose foram, em sua maioria, descobertos décadas atrás entre os manuscritos de Joyce, mas só publicados há pouco tempo por conta de desavenças judiciais com os herdeiros (a obra do autor só entrou em domínio público recentemente) e, o que pode ser bem mais brutal, discordâncias entre os estudiosos. Joyce os teria escrito em 1923, após terminar o Ulysses e antes de começar propriamente a lidar com o Finnegans. Para alguns, eles não constituiriam uma obra independente. Rose, contudo, acredita que eles se sustentam sozinhos. Seja como for, o melhor talvez seja deixarmos toda essa discussão genética com os afáveis acadêmicos e nos concentrarmos nos dez nacos de altíssima prosa reunidos no volume (o qual também traz uma nova tradução do Giacomo Joyce).
Uma vez que São Patrício chegou à Irlanda há coisa de um milênio e meio, é justamente esse o período coberto por Joyce no que ele chamou de “epiquetos”. Ele se fixa em paisagens tanto míticas quanto históricas da formação do país e o faz por meio de uma enorme diversidade estilística.
Seus procedimentos envolvem inversões, reimaginações (do mito de Tristão e Isolda em O Grande Beijo), paródias (Berkeley e Patrício irrompem juntos logo no primeiro episódio, A Tintinjoss de Irlanda), sacaneadas (com o eremita Kevin de Glendalough em Bondade com Peixinhos: “Ele simplesmente não tinha tempo para moças ou coisas e sempre dizia à caríssima mãe e às caras irmãs como o quanto a caríssima mãe e as caras irmãs lhe bastavam e pronto”) e, bem, mais sacaneadas (“Para qualquer um que tenha conhecido e amado a Cristicidade do grande gigante mentelimpa H. C. Earwicker durante toda sua longa existência, a mera sugestão de que seria ele um fuçaluxúrias à cata de mauscaminhos caídos em suas armadilhas soa particularmente patusca”, em Homem Comum Enfim).
Há motivos, vozes, situações e personagens aos quais ele retornaria selvagemente no Finnegans Wake. Logo, as preciosidades de Finn’s Hotel envolvem tanto um vislumbre da gênese de sua obra-prima mais radical quanto uma amostra razoavelmente acessível, ensolarada e divertida da prosa de James Joyce.