Uma mesa muito velha, devorada por cupins

Aquarius

Há poucos anos, quando vi O Som ao Redor, longa de estreia de Kleber Mendonça Filho, escrevi sobre a sutileza daquele filme, sobre como ele desvelava (em vez de pontificar, discursar, panfletar) alguns aspectos do apartheid brasileiro e passeava, na maior parte do tempo de maneira invulgar, por esse enorme fosso em que todos vivemos. Infelizmente, não é possível dizer o mesmo do novo trabalho do diretor, Aquarius. Neste, é como se houvesse dois filmes em um, ou a tentativa frustrada de fazer confluir um e outro a partir de um esboroante chão comum: o da memória.

O espaço da memória é simbolizado menos pelo edifício-título (um prédio antigo localizado na Praia de Boa Viagem, no Recife) e mais pela relação da protagonista (Sônia Braga), única e última moradora, com tudo aquilo que o lugar diz e/ou deveria dizer para ela e seus familiares, vivos ou mortos. Há uma teia relacional, cujos fios muitas vezes estrangulam quem se prende a ela, mas que, não raro, sustentam aqueles que se aproximam do mergulho derradeiro.

A essa teia relacional, ou antes ao modo como ela é tecida, corresponde o que o filme tem de bom. É KMF trabalhando com inteligência. Desde a bela sequência de abertura, ele recria audiovisualmente (isto é um filme, caralho!) o lugar da memória, inclusive e/ou sobretudo ao sublinhar uma série de ausências. Tome-se como exemplo o olhar que a velha aniversariante lança para uma cômoda, e a inserção que se segue, não de algo que ela tivesse guardado ali, cartas, um diário, fotografias, nada disso, mas, sim, da lembrança de uma trepada com alguém que já não está. A memória é um tal esforço para, ausentando-se, presentificar-se uma vez mais, mesmo que precariamente. Isto nós vemos.

A dança com fantasmas é animada pelo ótimo uso da trilha-sonora e devassada por uma câmera que, na maior parte do tempo, movimenta-se conforme a protagonista. O filme é da personagem (logo, da atriz), seus olhos conduzem o passeio e este se lança para trás, sublinhando aquela presença que se/nos ausenta (e vice-versa) típica da rememoração.

O que o filme tem de pior diz respeito ao prédio-título e à luta da protagonista para não deixá-lo. Há uma construtora que tenta forçá-la a vender o apartamento. Querem derrubar o edifício para construir outro, maior, mais “moderno” etc. e tal. A mulher se recusa, não obstante a pressão que passa a sofrer de todos os lados. Os “vilões” partem para o ataque. Ela resiste.

Ressalte-se: o tema é de enorme importância e se liga diretamente àquele primeiro aspecto, da relação com a memória e tudo o mais. O problema, então, é a forma como KMF trabalha determinadas cenas. A sutileza cede lugar para situações-laboratório e discursos travestidos de diálogos. A caracterização desses “vilões” é caricata, expondo uma espécie de preconceito às avessas; eles são os Incorporadores do Mal que não hesitarão em recorrer a coisas terríveis como bacanais barulhentos, cultos evangélicos e cupins para conseguir o que querem. Eles são passivos-agressivos (sic) que só se preocupam com dinheiro — e o termo é usado como se fosse um palavrão: dinheiro, diz, com nojinho, a protagonista.

Assim, a complexa incursão original é barateada, dando lugar a uma investida simplória e estereotipada contra a selvageria do capital. Após construir com cuidado a teia de relações da personagem com os lugares (pretéritos e presentes, físicos e não), KMF coloca tudo a perder com cenas mal ajambradas de embate com os homens malvados. O confronto na garagem (após a queima dos colchões usados na suruba) e o suposto clímax na construtora (catarse!) são tão constrangedores que parecem ter sido dirigidos via WhatsApp, enquanto o diretor depredava uma agência do Bradesco e corria da polícia no centro da cidade.

Em resumo, o saldo final é negativo. A sofisticação inicial de sua construção redunda em uma simplificação canhestra, no conflito entre protagonista (boa, íntegra) e antagonista (rico, logo mau). A desinteligência de tal escolha corrói o que foi tecido antes, e Aquarius desaba como uma mesa muito velha, cujos pés foram devorados por cupins.