Resenha publicada em 03.10.2015 no Estadão.
Foi em 25 de novembro de 1970. Acompanhado por alguns membros de sua organização extremista (a Tatenokai, ou “Sociedade do Escudo”), o escritor Yukio Mishima (pseudônimo de Kimitake Hiraoka) invadiu um quartel-general do exército japonês, em Tóquio, e tentou convencer os soldados a dar um golpe de Estado. O objetivo era restituir os poderes ao imperador. Em vista da indiferença alheia, Mishima proferiu um discurso nacionalista e então cometeu seppuku, o ritual suicida dos guerreiros japoneses. Tinha 45 anos e concluíra havia pouco a escrita de A Queda do Anjo, último volume da tetralogia Mar da Fertilidade.
O período compreendido pelos quatro romances (os outros três são Neve de Primavera, Cavalo Selvagem e Templo da Aurora, todos já lançados no Brasil pela Benvirá) vai de 1912 a 1975 e, em seu conjunto, eles evisceram os problemas advindos do avanço da modernidade ocidentalizante no Japão, com a “entropia moral” e das tradições que o autor enxerga nesse processo. O personagem central das narrativas é Shigekuni Honda e nos três últimos volumes nós o encontramos em períodos distintos de sua vida, relacionando-se com pessoas que ele acredita serem reencarnações de seu amigo Kiyoaki Matsugae (personagem de Neve de Primavera).
Em A Queda do Anjo, Honda é um idoso e rico juiz aposentado que enxerga no órfão Toru Yasunaga o espírito de Kiyoaki e, por isso, decide adotá-lo. O conflito maior do romance se dá pela psicopatia de Toru, que “gostava de olhar as pessoas como se fossem animais num zoológico”. Ele parece simbolizar a patologia do apodrecido tecido social japonês, e Mishima é extremamente bem-sucedido na forma como desenvolve não só a relação do jovem com o velho, mas a própria constituição de suas personalidades e o modo como ambas acabam por encaminhá-los ao desfecho em que a cegueira (literal e figurativa) tem um papel importantíssimo.
O personagem de Toru é, talvez, a melhor descrição de uma personalidade psicopata desde o Stavroguin de Os Demônios, romance de Fiódor Dostoiévski. Há, inclusive, a longa transcrição dos trechos de seu diário, quando Toru envolve a noiva, que despreza, numa teia de intrigas cuja finalidade é destruir a moça. “A única questão é que você encontrou uma maneira de passar a vida”, diz Honda a Toru, ao entender o que aconteceu. “E uma maneira sombria, sem doçura nenhuma, pode-se dizer.”
O rapaz parece não ter muita escolha, pois ter “que viver era mais negro do que o negro mais soturno”. Por causa, sobretudo, da perversidade desse personagem, Mishima discorre com eficácia acerca daquela já citada “entropia moral”, percebendo nela um sintoma da doença japonesa que tanto o incomodava, calcificada na morte das tradições e no fim de qualquer possibilidade de restituir a grandeza à nação. Independentemente de concordarmos ou não com a posição política do autor, e ressaltando o fato de que ela não contamina a sua escrita, importa encarar A Queda do Anjo e os demais volumes da tetralogia como obras extraordinárias e que carregam, em si, todo o espírito de uma época.