Resenha publicada em 30.05.2015 no Estadão.
Toda Luz Que Não Podemos Ver, segundo e premiado romance do norte-americano Anthony Doerr (1973), é uma bela façanha. Além de prender a atenção do leitor por mais de 500 movimentadas páginas, o livro é uma narrativa situada na Segunda Guerra Mundial que mantém o frescor e não tropeça em clichês de qualquer espécie.
Cobrindo um longo espaço de tempo, de 1934 a 2014, mas com especial atenção aos anos da guerra (sobretudo 1944, em que se passam 7 das suas 14 partes), o romance tem como protagonistas dois jovens: a francesa Marie-Laure, uma garota cega, obrigada a fugir com o pai de Paris para Saint-Malo, uma cidade localizada na costa bretã, e Werner, um órfão alemão que desenvolve uma tremenda aptidão para lidar com rádios e acaba engolido pelo regime nazista.
O encontro desses dois personagens é previsível (embora não as circunstâncias em que ele se dá, e tampouco o que ocorre em seguida). Na verdade, a própria estruturação da história como que o anuncia, na medida em que o foco narrativo se alterna entre eles, por meio de capítulos curtos, nos quais o autor cria uma respiração especial; é como se a forma restituísse algum sentido a um mundo que, então, parecia fadado à brutalidade e ao esfacelamento.
Doerr, por certo, não amacia nada (vide a forma como Frederick, colega de Werner na escola paramilitar nazista, é triturado pelos “iguais”, a estupidez colaboracionista que vitima o pai de Marie-Laure ou, ainda, o tratamento dispensado pelos russos às jovens alemãs, em momento excruciante do terço final do romance), mas alguns pequenos gestos perpetrados por vários dos personagens, aqui e ali, se não redimem ou obliteram a barbárie circundante, ao menos parecem devolver um mínimo de sanidade àquele mundo devastado.
Entre esses gestos, estão o cuidado com que o pai de Marie-Laure constrói maquetes e desenvolve métodos para que ela, cega desde os 6 anos, consiga se movimentar pelos lugares em que se encontram, Paris ou Saint-Malo, com liberdade e segurança, a atenção de Werner para com sua irmã, Jutta (que, embora mais nova, percebe o abismo que se aproxima muito antes dele), e mesmo a camaradagem entre alguns combatentes, jovens demais, largados nos estertores de uma guerra perdida.
Também é muito feliz, na primeira metade do livro, a contraposição que se estabelece entre Marie-Laure e Werner, e mais: enquanto a menina cega apreende a cidade e consegue a caminhar por ela sozinha, o menino alemão coloca um velho rádio para funcionar e, por meio dele, recebe a propaganda nazista, ponta de lança de um regime que terminará por cegar um país inteiro.
Há, ainda, a intriga envolvendo uma pedra preciosa, o Mar de Chamas, cujo valor exorbitante não a livra de uma fama terrível, pois seria amaldiçoada. Com a ocupação, o pai de Marie-Laure, chaveiro do Museu de História Natural, é incumbido de escondê-la; a fome dos invasores pelas riquezas alheias era notória.
Todos esses detalhes e personagens, e muitos outros, convergem para o clímax em uma Saint-Malo destroçada pelos bombardeios aliados, em meados de 1944. Em Toda Luz Que Não Podemos Ver, Doerr primeiro nos soterra na escuridão absoluta, no esgarçamento extremo, para só então nos devolver à luminosidade precária de um mundo que insiste em não desaparecer.