Resenha publicada em 14.02.2015 no Estadão.
Os nove ensaios de Virginia Woolf (1882-1941) reunidos em O Sol e o Peixe são uma boa amostra de uma obra ensaística que, a despeito de a autora ser mais conhecida por romances como Mrs. Dalloway e Ao Farol, e conforme nos informa o organizador e tradutor Tomaz Tadeu, soma mais de três mil páginas. Por sua vez, os textos constantes do volume trazem características que os afastam dos temas habituais da prosa de não ficção de Woolf, mais voltada às resenhas e análises literárias, constituindo reflexões de forte carga lírica – o que explica o subtítulo Prosas Poéticas.
Os ensaios são inteligentemente divididos em três blocos, A Vida e a Arte, A Rua e a Casa e O Olho e a Mente, e cada bloco comporta três textos. Em Montaigne (1924), que abre o livro, a autora discorre sobre o pensador francês, ao mesmo tempo em que permite que o estilo e as inquirições levadas a cabo por ele animem e deem sentido ao que ela própria escreve. Temos, com isso, uma bela digressão sobre a forma do ensaio e como esta pode (ou não) refletir quem faz uso dela: “Pois, para além da dificuldade de comunicar aquilo que se é, há a suprema dificuldade de ser aquilo que se é”.
No ensaio seguinte, Memórias de Uma Filha (1932), ela retrata seu pai, o historiador, jornalista e (sim) alpinista Leslie Stephen. Mais do que acumular caracteres e idiossincrasias, ela se esforça para distinguir, como se o fizesse com traços de giz, em meio à densa neblina da memória, a figura de um homem descrito por outrem como “um cavalheiro que veste boas roupas sem sabê-lo”. E, lendo essas páginas, torna-se fácil pensar em Woolf como uma dama vestida com bons sentimentos sem explicitá-lo, pois a afetuosidade navega tranquila, linha após linha, entrelinha após entrelinha, sem jamais impor sua presença com estardalhaço.
Por fim, se Montaigne pode (também) ser lido como uma reflexão sobre a escrita, A Paixão da Leitura (1931) nos lembra das nossas obrigações como leitores. Há um pedido de cumplicidade, para que nos coloquemos, ao menos a princípio, com o livro, e não contra ele.
Na segunda parte, a autora se lança para fora de si e de casa. Flanando por Londres (1927), outro grande momento do livro, é uma correnteza narrativa que se coaduna com o fluxo (de pessoas e, portanto, de histórias) da grande cidade. Tem-se, ali, o germe da criação ficcional, posto que “de uma frase ao acaso fabricamos toda uma vida”, construindo a ilusão de que “podemos assumir, brevemente, por alguns minutos, o corpo e a mente de outra pessoa”.
Tal esforço, agora voltado para (e contra) as muitas “vozes interiores”, tem prosseguimento em Anoitecer Sobre Sussex (1942). À acomodação do mundo exterior, segue a acomodação do mundo interior, até que se esteja unicamente “na deliciosa companhia do próprio corpo”. Feito isso, Sobre Estar Doente (1926) trafega ao nível da carnalidade, pelas ocasiões em que a doença enseja um novo modo de ver e ser visto, e também a oportunidade de, enquanto leitores, continuarmos conectados a algo que nos é extrínseco.
Na derradeira parte do volume, Woolf fala com os olhos, por assim dizer, refletindo sobre a pintura (1925) e suas relações possíveis e impossíveis com a escrita literária, o cinema (1926) – quando, muito acertadamente, ela prevê que a sétima arte só se firmaria enquanto tal ao desenvolver uma gramática própria, descolada do discurso literário – e, por fim, no ensaio-título (1928), sobre o olhar e a memória – “um cenário só sobrevive na estranha poça em que depositamos nossas memórias se tiver a boa sorte de se juntar a alguma outra emoção pela qual ela é preservada”. É o encerramento perfeito para um conjunto de textos que parte do olhar e retorna a ele, estabelecendo um trajeto que alude ao próprio esforço ensaístico e literário.