Novo

Trecho inicial de Abaixo do Paraíso,
meu novo romance.

Roseli Vaz

Cristiano soube tão logo abriu os olhos: não estava em casa. Ele sentiu a camisa grudada nas costas, depois o peito congestionado, a testa empapada. Os olhos ardiam. Desacostumara-se com a atmosfera febril do lugar. Ela o adoecia, ou talvez fosse a ressaca. Em todo caso, o calor não esperava o dia avançar, havia um pequeno intervalo ao fim da madrugada (não estava tão quente quando ele despencou ali, por exemplo), mas antes e depois era a mesmíssima investida crematória, o castigo ensolarado do Criador.
Levou a mão esquerda à testa. Tremia um bocado.
Os ponteiros do relógio de parede, um metro e meio acima do encosto do sofá, estacionaram às três e pouco de alguma tarde ou madrugada (como saber?). Seria possível que alguém tivesse testemunhado o momento exato em que o relógio pifara? Por acaso, atravessando a sala, olhando naquela direção no instante em que o ponteiro mais fino desistia? Esfregou os olhos, que arderam mais. A impressão de que o tempo para quando olhamos diretamente para ele.
Ele se sentou, bocejando. Onde foi que eu meti o celular? Apalpou os bolsos das calças, o vão entre o braço e a almofada do sofá, mas não encontrou nada. Talvez estivesse na mochila, ou no carro, no banco do carona, no porta-luvas, descansando sobre a Bíblia, talvez jogado no painel ou caído no assoalho. Melhor não ter esquecido em alguma birosca, a bebedeira da tarde anterior invadira a noite e ele e os outros se entregaram a uma odisseia etílica Taguatinga adentro, pulando de boteco em boteco, três, quatro, nem se lembrava mais, as mãos trêmulas agora, o estômago substituído por uma família de roedores.
Não.
Usara o celular ao chegar a Goiânia, claro, a ligação intempestiva a que Paulo atendera assustado (eram cinco e dez da manhã), quer me matar do coração, fidumaégua?
— Onde foi que você se meteu?
Deu uma rápida olhada no chão, ao redor dos pés e da mochila, podia ter caído por ali, ou se jogado, as coisas ganhando vida enquanto ele dormia e o celular pulando no vazio, animado pelo relógio estanque, é a melhor opção, amigo, acredite, um suicida cansado da estrada, saltando. Aqui eu termino. Lá estava: dentro do calçado, o pé esquerdo, confortavelmente aninhado sobre a meia suja. Uma espécie de manjedoura. Ele o alcançou. Morto, de fato. Descarregado. Parecia refletir a inércia do relógio pregado na parede. Dois entes silenciados. Entre a manjedoura e a cruz, um cansaço enorme.
O barulho do liquidificador se espalhava desde a cozinha, misturando-se à notícia televisiva de um assassinato, a repórter de olhos arregalados e braços duros escandindo uma ou outra sílaba como se fosse ela a vítima dos tiros e um dano neurológico se insinuasse no corpo e na fala — as palavras esvaziadas, reafirmando a gratuidade de seu uso.
Ainda é cedo, pensou Cristiano. E era mesmo.

…………

Imagem: Roseli Vaz.

O romance sairá pela Rocco, mas ainda não tem data de lançamento. Sigo acertando uns detalhes, revisando uns trechos, arredondando o troço. Mas acho que está quase pronto.