Eldorado

“Então eu felicito os mortos que já morreram, mais que os vivos que ainda vivem.”
Eclesiastes, 4:2.

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Eldorado é o episódio final de Boardwalk Empire e traz as duas mortes de Enoch Thompson, seu protagonista. A primeira morte é moral. A segunda, um estilhaço do passado que lhe arranca, de vez, a cabeça. Há uma circularidade sutilmente tecida no decorrer de toda a quinta e última temporada. Acompanham-se os motivos do salto e os estragos da queda.

Desde o piloto, soberbamente dirigido por Martin Scorsese, a série institui suas correntes, por assim dizer. O período é o da Lei Seca (1920-1933), durante o qual o crime efetivamente se organizou e figuras como Charlie Luciano e Meyer Lansky ascenderam, sistematizando as atividades ilícitas, solapando as velhas lideranças e o modo como as coisas eram feitas e, por fim, formando a famigerada Comissão. Colosimo, Torrio, Rothstein, Masseria, Maranzano, Capone e Thompson vão ficando pelo caminho.

Nisso, há duas coisas geniais na condução da série. A primeira delas é o modo como os roteiristas se apropriam do período e dos personagens históricos; muito do que se vê realmente aconteceu (a recriação da morte de um dos irmãos Capone, em meados da quarta temporada, é particularmente abrasiva), e o que não aconteceu (Thompson é livremente inspirado em Enoch L. Johnson, “dono” de Atlantic City de 1910 a 1941) serve para melhor desvelar essa “outra história americana” em todo o seu brutalismo. A segunda é como a série explicita que, na prática, não há distinção entre essa “outra história” e a “oficial”, entre o mundo e o submundo. O senador Joseph Kennedy, figura proeminente na quinta temporada, que o diga.

O desfecho de Boardwalk Empire não se traduz em um fechamento. Encerra-se o círculo narrativo de Thompson (uma vez que o fim ecoa o início, e o início está bem ali, no fim, na própria imagem dele, garoto, mergulhando no mar e alcançando uma moeda que jogaram), mas, observando-se o contexto maior, compreendemos que houve, desde o começo, a preparação para um mundo que se abre. Num certo sentido, o período enfocado é um interlúdio sangrento que leva à constituição de um novo modo de ser e estar na América.

A formação e solidificação da América corporativa também se deram no âmbito do submundo, como se vê e se sabe. O período entre-guerras comporta primeiro um tatear nas trevas (Lei Seca, Depressão) e, depois, não uma superação, mas um entendimento melhor, mais amplo e profissional de como proceder no interior das sombras. Luciano e Lansky são os criadores e capitães desse novíssimo modus operandi.

Mas, para além disso, Boardwalk Empire é também a narrativa (íntima, intimista, interior) sobre alguém vacilante entre o mundo que se esfarela e o novo estado de coisas. Thompson aprendeu, talvez um pouco tarde demais, o que Luciano e Kennedy parecem saber naturalmente: não é possível ser “meio gângster”. (Em verdade, para alguém como Kennedy, tal distinção sequer existe, é uma bobagem.) No entanto, seu destino não é definido por essa vacilação (levada ao extremo justo quando ele toma uma atitude que considera “ousada” e sequestra “Bugsy” Siegel) e, sim, pela escolha resoluta tomada anos e anos antes, quando se deu conta de que sua metade “não gangster” era contraproducente.

O descompasso entre o homem e seu mundo, ou o mundo que julgava seu, transforma o legado de uma vida no prêmio para os que souberam caminhar no fogo. Os cadáveres que se vão amontoando refletem o descompasso desses que ficam pelo caminho e o esforço dos que assumem o topo da cadeia alimentar. O equilíbrio é precário, as variáveis são inúmeras. A violência pontua a dinâmica da coisa. O Eldorado é uma sucessão de valas comuns.