Antes de dormir

Trecho do meu romancemprogresso.

ceu-estrelado

As coisas trazidas aleatoriamente pela conversa à mesa do jantar se interpuseram entre Cristiano e o sono. Deitado na cama, a mesma cama de outros tempos, aqueles tão falhamente evocados, percorreu de novo alguns dos tópicos da conversa, procurando se aproximar do que assinalavam, fosse o que fosse.

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Era a mãe quem o acompanhava naquela noite em que, orgulhoso da jaqueta nova (a que se referia como “japona”), descuidou-se da calçada maltratada da rua José Delfino (foram visitar uma prima da mãe na Cel. Vicente Miguel e deixaram o carro por lá, optando por caminhar uns poucos quarteirões até a igreja), tropeçou e deu com a testa no chão. A mãe se abaixou de imediato, trazendo-o para junto de si, virando o corpo enrijecido pelo susto, assoprando a testa que inchava, o corte deitando sangue, ele agora sentado na calçada, afinal livrando as mãos dos bolsos da japona. Era a mãe, embora Lázaro tivesse se colocado no lugar dela ao relembrar o acontecido, ia com ele para a missa, tinha o quê?, cinco, seis anos, não, não ia, era a mãe, o pai restringia as idas à igreja às datas festivas (Páscoa, Natal) e fúnebres (missas de corpo presente, missas de sétimo dia), e aquela não era uma data fúnebre ou festiva, mas um domingo qualquer, em que Lázaro permanecera em casa, sentado diante da TV, as pernas esticadas, o pai, avô de Cristiano, resmungando de sua poltrona surdamente próxima do tubo, não viveria muito mais, o velho. A mãe, ela o levantou. Voltaram ao carro, foram ao hospital, o ferimento limpo, dois pontos, a médica sorrindo e dizendo que podia ser pior, a médica que depois assinaria o atestado de óbito da mãe, que depois cederia o apartamento goianiense para Cristiano, você podia ter caído de boca e arruinado os dentes, os lábios, o nariz, seria bem pior, muito mais doído, mas você foi esperto, não foi?, sim, ele fora, oferecendo ao chão o que tinha de mais duro, mais resistente, inquebrável até, o rapazinho mais corajoso e esperto que eu já vi, disse a médica, muito espero, muito corajoso. Não voltaria a usar a japona; os respingos de sangue a inutilizaram.

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Soube do suicídio de Jonas no pátio da escola, em pleno recreio. Os colegas de sala, quatro ou cinco deles, formavam uma roda e falavam de futebol, quando outro se aproximou, o elo eletrificado de uma corrente que tinha estourado lá dentro, nos corredores, olhos arregalados, perguntando se estavam sabendo. Sabendo do quê? A notícia de um suicídio não era incomum na cidade. As pessoas se matavam o tempo todo em Silvânia. Mas, exceto por um parente da mãe, um tiro no peito ao descobrir que o filho da esposa era de outro, e pela professora do jardim de infância, que ensinara Cristiano a colorir com menos força e mais precisão e que se enforcara com um cinto amarrado à grade da janela do quarto (coisa muito comentada, muitos julgavam impossível se enforcar daquela maneira, a uma altura tão baixa, as pernas dobradas, os joelhos quase tocando o chão), ninguém assim próximo de Cristiano integrava, até então, as estatísticas. Ele ficou em silêncio, os braços cruzados, enquanto os colegas comentavam que, em se tratando de Jonas, louco como era, um troço daqueles era até esperado.

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O vereador teria dito que a mulher do dono da loja de tecidos sorria feito uma puta (Cristiano tentou imaginar o traço distintivo do sorriso de uma puta, sem sucesso) ao deixar o motel com o funcionário do Banco do Brasil, no carro dele, em plena luz do dia. Segundo Marta, ela fora expulsa de casa e, não tendo outra opção, vivia de novo com a mãe, em Pires do Rio. O dono da loja de tecidos teria dito que mataria o funcionário do Banco do Brasil, mas este, a despeito das ameaças do marido traído e dos comentários e risinhos e gozações das outras pessoas, levava a vida de sempre, atendendo os correntistas das dez às quinze, jogando futebol às terças e quintas (era um zagueiro relapso no time dos solteiros) e bebendo cerveja de terça a domingo, na AABB e em outros locais, às vezes sozinho, às vezes acompanhado, mas sempre em grande quantidade.

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O carro capotou. Estava a uma velocidade absurda, disseram, e capotou em algum lugar entre Caldas e Vianópolis, os dois ocupantes mortos ali mesmo, um deles atirado para fora, noite adentro, o outro esmigalhado ao volante, o peito afundado, uma das pernas seccionadas. Ex-colegas de escola de Cristiano. Mesas de boteco, também. Mas não os via ou falava com eles havia dez anos. O carro ganhando vida e, aliando-se ao asfalto, insurgindo-se contra as mãos bêbadas que o conduziam.

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Lázaro e Cristiano caminharam estrada acima e depois entraram no pasto. A noite estava muito clara. O pai apontou para o céu, um ponto específico, e disse que o cometa era aquilo lá, está vendo? Bem ali? Cristiano olhou, mas não conseguiu divisar nada. Estrelas, pontos brilhantes, mas qual deles era o Halley? Está vendo?, o pai perguntou, braço ainda esticado. Cristiano sentiu vergonha e disse que sim, estava vendo. É bem bonito, pai. Bem bonito mesmo.

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Deitado ali no escuro, estendido na velha cama de solteiro, sem que tivesse um corte aberto na testa, sem que estivesse à beira do córrego e prestes a se matar, sem que fosse um marido corneado ou a mulher exposta e alijada de casa e da cidade ou o reles bancário em sua vidinha nula e alcoolicamente afogada ou o vereador ansioso por ver e contar, sem que fosse atirado para fora de um carro que capotava ou destroçado dentro do veículo, com o veículo, sem que olhasse para o céu estrelado, na esperança de testemunhar um evento cósmico e não visse nada além do mesmo céu de todas as noites, Cristiano levou as mãos ao rosto e sentiu e pensou que cairia no choro, mas isso não aconteceu. Ficou ouvindo o vento lá fora, e era como se as árvores caminhassem ao redor da casa, velhas e pesarosas.