O pintassilgo, de Donna Tartt, ganhou o Pulitzer, mas não a unanimidade crítica. Teve o que os garçons do Village chamam de mixed reviews. Até aí tudo bem. O problema é quando fica muito claro que alguns desses resenhadores não percorreram todo o caminho. Quer dizer, o livro não é salingeriano (o narrador é adolescente durante o quê? Um quarto das setecentas e poucas páginas do calhamaço?) ou dickensiano (ele perde a mãe e depois o pai, mas boa parte dos percalços pelos quais passa é fruto de suas escolhas; noutras palavras, é um moleque viciado, ladrão e inconsequente, que depois se transforma num fraudador, para não dizer mais — e incorrer em spoilers), não é ou quer ser “fácil” e nada tem de “autoajuda”: “(…) ninguém, nunca, jamais, vai conseguir me convencer de que a vida é uma coisa incrível e gratificante. Porque, esta é a verdade: a vida é catástrofe. O fato básico da existência — de sairmos por aí tentando nos alimentar, encontrar amigos e o que quer mais que façamos — é catástrofe” (p. 715). Acho saudável encarar o romance (qualquer romance) como uma pessoa, um alguém em vez de um algo. A “pessoa” em questão é idiossincrática, neurótica, ela se arrasta quando quero que corra, ela se cala quando preciso que fale, ela fala quando deveria calar a boca. Boa parte de sua beleza deriva dessa inconformidade, dessa despreocupação quanto aos limites, quaisquer que sejam, feito uma visita que se comporta mal, mas da qual não conseguimos nos livrar porque ela também sabe ser encantadora. Passagens estupendas (o atentado, a viagem de Vegas a Nova York, o confronto em Amsterdam, o longo acerto de contas com Boris, em que até mesmo O idiota, de Dostoiévski, e uma discussão sobre o mal se fazem presentes) são assim estabelecidas justamente pela desmedida da narração como um todo, pelos riscos que Tartt assume em sua falta de comedimento, em sua paixão pelo que está sendo contado ali, naquele momento, e depois, e depois, e depois. O pintassilgo é um romance em que os traços se sobrepõem, mas não conseguem (nem intentam) esconder o abismo sobre o qual os personagem se equilibram, e nós com eles, “rindo na fúria santa”. Parafraseando um trecho (p. 714) que se refere à pintura de Fabritius que lhe empresta o nome (e o mote), o romance olha para nós; não há moral, há apenas um duplo abismo — entre a autora e o romance; entre o romance e nossa experiência com ele. Esse duplo abismo remete ao abismo maior, entre o mundo e a nossa experiência com ele. Aqui, não há equilíbrio possível. Mas há (pode haver) beleza.