Ficção (*).
I
POEIRA E FANTASMAS
Sozinha e cheia de coisas na espelunca (à espera do fim?), a garçonete ajeita o vestido e os cabelos e considera cuspir de lado. Reconsidera e não cospe, farta de porcas porcarias.
Estatelada sozinha e cheia de coisas na espelunca, à espera do fim, só que ainda não sabe – talvez desconfie.
Uma última talagada e a lata ganha altura e depois perde e é claro que cai a dois metros e meio do maldito cesto de lixo. A vida, tão imprevisível. Acontece e nada mais? Acontece que nada mais.
Sentada a uma das mesas com um livro aberto sob o queixo, olha ao redor e que desgraça de marasmo, de vidinha mais rasteira, e a lata termina de rolar ruidosa parando junto da parede encardida que – quando foi mesmo que eu limpei da última vez?
Não importa, fregueses ali são acidentais desde que a vizinhança morreu porque fecharam duas fábricas que funcionavam nas redondezas.
Poeira e fantasmas.
Na rua outrora movimentada só passam agora um ou outro bêbado, estudantes aventureiros e desocupados, nunca em qualquer horário mais ou menos estratégico e sempre em direção a qualquer outro lugar que não aquela espelunca.
GIGANTETAS E OS MENINOIDES
Maldito fecho dianteiro do sutiã quando gigantetas é o que se tem. Fica torta a coisarada toda e parece que o maldito fecho vai estourar e tudo vai abrir e dois meninoides molengões sairão dançando fellinianamente às vistas de todo mundo.
TODO MUNDO?
Os fregueses. Acidentais desde a morte da vizinhança, uns poucos cadáveres insepultos aproveitando os aluguéis quase dados (nada é dado) desde o fechamento dos gigantescos animais cuspidores de fumaça. Abertos os seus portões, empregados e operários enchiam o recinto à hora clara do almoço e à escura do happy hour. Poeira e mais poeira agora.
RUMO AO NORTE
O patrão mandou avisar seis dias atrás: mais duas semanas e só. A garoçonete cogitou procurar outras coisas, inencontráveis. Velho jogo de fazer continhas: trinta e oito anos, superior interminado, nenhum saco para o que quer que seja. Daí que avisou ao já quase ex-patrão:
— Vou me mandar.
— Pra onde?
— Norte.
— Tem parentes lá?
— Não.
— Então vai fazer o quê?
— Não sei.
— Por que não dá um tempo aqui? Te arrumo outra coisa.
— Não quero outra coisa. Só quero dar o fora.
Nenhuma explicação razoável à mão, mas ele tampouco insistiu. Ninguém veramente interessado em ninguém. Pessoas perguntando e respondendo sem dar a mínima para o que perguntam e respondem. Vozes se esborrachando gratuitas em tudo que é lado.
Poeira e fantasmas.
CUS DE MÃES
Quando as fábricas fecharam e a vizinhança morreu, as putas que atendiam nas quitinetes das redondezas foram as primeiras a se mudar. Putas alforriadas, sem gigolôs. (Que foi feito dos gigolôs?) Alugavam quitinetes, botavam anúncios nos jornais e esperavam ligações. Deram o fora, todas. Então, mães solteiras com suas crianças geralmente pequenas se mudaram e se mudam para o bairro atraídas pelos alugueis baratos. Algumas, eventualmente desempregadas, logo se veem e são vistas dando os rabos para os senhorios tão sem escrúpulos quanto desgostosos dos largos e flácidos materiais que têm em suas casas. Na falta de dinheiro, eles exigem os cus e nada mais. Os cus, não as largas bocetas vitimadas por parimentos recentes. Lógico que não propõem a todas, só às efetivamente solteiras e cujos filhos são ainda bem pequenos. Há as que sequer esperam a proposta e já se oferecem. As engrenagens do universo capitalista ocidentário catraqueando nas pregas das bocas dos cus daquelas pobres tão pobres senhoras.
TIROS PRÓXIMOS NA NEGRA ALVORADA
No que a garçonete, ela mesma, sente as pregas da boca do próprio cu avisando que é chegada a hora da qual não se foge e para a qual se corre. Azulejos verde-musgo incruentos de gordura, lâmpada de luz amarelada, espelho quebrado no armário, tampa rachada da privada, vazamentos — o santuário onde ele (cu) dela (garçonete) tem lugar.
Ela entra, acende a luz, ergue o vestido, baixa a calcinha e se coloca a postos.
Tambores, tiros próximos. Negra alvorada do vir-a-ser.
Primeira bateria eminentemente líquida. Sonora. Ela pensa em oceanos e mares, ela pensa no Mar Morto. Ela pensa em marinheiros. Ela pensa em cataratas. Ela pensa no próprio mijo.
Então, o primeiro dos pelotões de elite. Negro alvorescer do fim dos tempos. Sobranceiro, fornido; majestoso, gorducho — mas sólido. Fibras e líquidos, em verdade, em verdade vos receito. Cheiro sadio por aqueles lados. Sadio, familiar, todo dela. O segundo pelotão, menos sólido, dividido em dois grandes agrupamentos redondões: ploc, ploc. Ainda um pequeno grupo de paraquedistas, e pronto.
Batalha ganha.
Monstruoso alívio intestinal, o ânus disfarçando o biquinho e — reiteram as vísceras — pronto, pronto, pronto.
Chuveiradinha localizada, papel higiênico macio e o mundo voltando a girar. Claro, a descarga. Belos exemplares aqueles. Rígidos, bem constituídos, quase sorridentes. Filhos da gente. Tchau, tchau. Dando o fora goela-da-privada abaixo. Vou dar o fora feito vocês, ela pensa. Fora mesmo. Longe, longe: para outra estação.
Mas isso já não é ela pensando.
A ANUNCIAÇÃO
Oito da manhã quando o garoto entra arrastando sua mochila e se senta à primeira mesa, bem defronte ao caixa. Ele não parece um marginalzinho; marginais sabem que ali não há dinheiro. Não: metido no uniforme da escola pública de alguns quarteirões acima, a medonha camiseta amarela com o mapa do estado pintado de verde nas costas, ele veio, estritamente, ou pelo menos a princípio, tratar de negócios:
— Tem suco de quê?
— Laranja e caju.
Está parada diante dele, já o viu passando pela rua. Dezesseis, no máximo dezessete. Alto para a idade, mas o que ela entende disso?
— Laranja.
— Gelo e açúcar?
— Pode ser.
— E pra comer?
— Nada.
Seis minutos depois, o suco desce que é uma beleza. Uma beleza também o decote, ela sentada ao balcão pelo lado de dentro com um livro aberto debaixo das fuças e que beleza de gêmeos crescidões jogados amistosamente um contra o outro e o suco desce mesmo que é uma beleza.
— Que livro é esse?
Ela ouve e não ouve. Levanta a cabeça bem devagar e encara o garoto com uma expressão pesadona, francamente imbecil, de quem olha sem ver.
— Que livro é esse? — ele repete, olhos presos nas tetas brancas e vastas, vastíssimas, quase uma só.
— O castelo — a voz tão ausente quanto possível, e, de fato, não o encara para valer, ao menos não ostensivamente; responde como se respondesse a uma cadeira que, pro um milagre tedioso e inútil, de repente lhe dirigisse a palavra.
O garoto, excitado, tenta adivinhar a idade dela e ao mesmo tempo em que a observa com o máximo de atenção, ansioso por cravar na memória cada mísero detalhe do que entrevê dos peitos e do colo e do rosto, o rosto muitas vezes sendo tão importante quanto as tetas e as pernas e o traseiro, pois, quando trancado no banheiro ou no quarto, calças arriadas e a respiração descompassada, ele entende que uma boceta é só uma boceta, mas uma boceta com um rosto é quase uma epopeia, e também a voz, a voz sendo parte do que ele, dadas as circunstâncias masturbatórias vindouras, terá de mais palpável, justo quando a palpabilidade é tudo.
Mas ele não foi ali apenas para isso. Há algo a dizer. Um anúncio. A informação que o fez criar coragem e adentrar a espelunca e encarar a garçonete. Deixar de ser uma cadeira, portanto, é essencial.
— Tenho que te contar uma coisa — diz a cadeira no momento em que ela vem buscar o copo e cobrar a conta, e ela pensa que não quer saber de uma coisa nem de coisa alguma. Mas a cadeira é educada e parece mesmo ter que lhe falar uma coisa e não apenas encarar os gêmeos como ela percebeu despercebendo quando veio anotar o pedido, e o que ela faz? Fica parada diante dele (cadeira-que-fala) com o copo vazio suspenso no ar decidindo se ouve ou não a coisa que inclusive já começou a ser dita: — Eu moro na rua de cima e passo todo dia aqui na porta quando vou pra escola. Essa rua tá sempre vazia, mas de uns dias pra cá eu vi um carro parado ali do outro lado com um coroa todo bem vestido dentro. Isso foi por três dias seguidos, sempre na mesma hora, quando eu tô subindo pra escola. O mesmo carro, com o mesmo sujeito fazendo a mesma coisa: sacando esse lugar.
Não é a cadeira, ela pensa, mas o garoto. O garoto que fala. Ela não viu carro nenhum, ou viu e não deu a mínima. Talvez tenha confundido com um poste, e esse poste agora cai na sua cabeça: ele vem sobre ela e a cobre de sombra.
— Quando é que foi isso?
— No começo da semana. Segunda, terça e quarta.
Ao ouvir isso, ela se perturba refletindo sobre o que, afinal, essa conversa significa. E pergunta justamente o que não interessa:
— Como… como é que era o sujeito?
— Um coroa. Terno e gravata. Cabelo grisalho.
O garoto, não a cadeira. Dezesseis, dezessete anos. Uniforme de escola pública. Olhos no decote. Medindo, desmedido. E falando uma coisa muito, muito séria. Cabulando aula para isso (decote, falar). Por quê? E por que ela sente como se o poste caísse sobre a sua cabeça, sem escalas ou amortecimento?
LIGANDO PONTINHOS
O cérebro humano gosta de ligar pontinhos, falsos ou não. O pobre sujeito estressadinho que acha que a mulher o está corneando liga um monte de pontinhos até o momento em que a executa com um pedaço de pau no alpendre da casa da sogra.
Coisas que podem ou não estar acontecendo.
O cérebro, na verdade, caga para a “verossimilhança” e só quer mesmo saber é de ligar pontinhos, e o faz numa velocidade tão estupidamente alta que o que passa a importar são os pontinhos em si, os que já estão ligados, os que falta ligar e o desenho da coisa toda. Eles se tornam autossuficientes, uma realidade em si, e o resto que se dane.
Portanto, no momento em que ela saca que é o garoto e não a cadeira quem lhe fala “uma coisa”, e que essa coisa pode muito bem ser UM pontinho que ela sinceramente esperava NUNCA ter que ligar, mas que sabia (sempre lá no fundo) que mais cedo ou mais tarde ele seria, sim, ligado, bem, é mais ou menos aí que o mundo começa a girar (parado fazia um tempão) e a girar tão rápido, mas tão rápido, que ela não apenas sente como sabe que ele (mundo) não só pode como vai (feito o tal poste que na verdade era, é, um carro com um coroa dentro) cair na sua cabeça.
— Um carro?
O que ela esperava que o garoto dissesse? Um poste, dona. Tinha um poste lá fora sacando o lugar e eu acho que ele vai cair na sua cabeça. Porque ela encara o garoto com uma expressão imbecil de todos-os-pontinhos-estão-ligados-e-brilhando, a expressão de quem entendeu bem demais o recado.
Ela deixa o copo sobre a mesa e senta-se diante do garoto. Um amontoado de gestos mecânicos, nada naturais. Naturalmente, mesmo percebendo que alguma coisa vai muito errada, ele não consegue tirar os olhos do decote. Daí que:
— É algum ex?
— Hã?
— O coroa. É algum ex-namorado? Ex-marido?…
Ligando os pontinhos: — N-não, eu… não acho…
Ela se levanta e vai até o balcão. Coloca o copo ali em cima e fica um momento parada. Aquele momento. Fosse uma coisa boa, o momento epifânico em que todos os pontinhos se encontram solidamente ligados, e ela só consegue pensar que a coisa toda faz sentido demais, e ela fica ali encostada e tudo o que consegue fazer é tremer, e tremer um bocado. Meio perdida, encara o garoto embaçadamente e percebe o que ele continua encarando, apesar de tudo. Gratuitamente. Troca de olhares o escambau. Ela cambaleia de volta para a mesa e senta-se. Respira fundo.
NÃO IA ADIANTAR PORRA NENHUMA
— Você tá bem? — ele pergunta olhando-a (acredite) direto nos olhos.
Ela balança a cabeça afirmativamente, um milímetro para cima, outro para baixo, e diz que: — Mais ou menos.
— Vai… vai chamar a polícia?
“Polícia”: a palavra faz com que ela volte e enxergá-lo. E sorri: — Pra dizer o quê?
De fato. O momento, aquele, que passou e levou um pedaço dela, agora parece de volta. Lucidez. Entendimento geral e irrestrito de tudo. Do que está havendo, do que houve, do que haverá. Bom-dia, seu guarda. Alguém num carro, do outro lado da rua. Há alguns dias. Não. Me contaram. Não, eu não vi. Ele viu. É, aquele menino. Não, não fez nada. Ficou lá. Parado. Olhando.
— Não. Não ia adiantar porra nenhuma.
E lágrimas rolam pelo rosto dela. Mas ela não soluça, nem geme, e parou de tremer. Esfrega os olhos com as duas mãos e os antebraços, assim juntinhos, imprensam os peitos e os olhos dele são adolescentemente atraídos de novo para eles, de tal forma que,
(TÁ DE PAU DURO?)
quando abaixa as mãos e o encara, ela finalmente percebe, e percebe para valer, processa e saca e computa e entende e compreende e vê (oceano de carnes quase que inteiramente à mostra logo abaixo do próprio queixo), e saca de imediato a semgraceza dele e sorri maternaltristemente e o vê abaixar a cabeça e olhar as próprias — dele — mãos sobre a mesa, pensando seriamente em dar o fora.
— Ficou sem graça?
Ele sorri. Sem graça, ele. Claro.
— Qual a sua idade?
— Dezesseis.
E é isso. Todos os pontinhos como se fossem um só, inextrincáveis. Objetivamente: ela pensa no que está para perder e no que muito provavelmente pode ganhar antes de perder o que tem. Assim, seguindo pontinho por pontinho até a Luz, só há uma coisa que ela pode e deve dizer, e diz:
— Tá de pau duro?
O garoto, sem parar para pensar sobre (e perceber e processar e computar e entender e compreender) o que está em curso, encara corajosamente a garçonete (olhos nos olhos, quero ver) e faz que SIM com a cabeça.
E o que está em curso? O que está acontecendo?
RELATÓRIO/RECAPITULAÇÃO/CAPITULAÇÃO
Num nível estritamente corpóreo ou mesmo epidérmico (por enquanto), é uma foda que se anuncia — a primeira dele e a última dela.
Recapitulando, sem medo de soar gratuito, impreciso ou (vá lá) inverossímil: o garoto passa todo dia (ou quase) por aquela rua deserta, abandonada; ele passa por ali porque gosta de passear por aquele cenário desolado e, claro, porque notou a garçonete. Não é bem o caminho para a escola, mas as mulheres passam quando passamos por elas e, bem, são mulheres. Para alguém com dezesseis anos, virgem, muito mais do que mulheres.
E a garçonete?
Ora. A conta sempre chega. De um jeito ou de outro. E todo mundo se fode, seja pelo “certo”, seja pelo “errado”. A coisa vem pegar. Sempre.
Agora, a trepada.
O garoto vinha encarando os peitos dela desde que adentrou o lugar, inclusive enquanto pronunciava (ignorante disso e de quase todo o resto) a sentença de morte dela. Pequeno anjo do bem, mensageiro anunciando o mal, de pau em riste sem ter consciência do mal ou do bem, e sim dos peitos dela, e aí:
— Tá de pau duro?
E ela vai se entregar porque já entregou todo o resto.
A FODA
A última foda, quando sabemos que é a última, pode ser um monte de coisas. A última foda, sendo mesmo a última, e tendo-se consciência de que é a última, pode ser:
a) animalesca;
b) técnica;
c) triste;
d) animalesca e triste;
e) triste e técnica.
E é a na cozinha que eles se bastam. Uma foda a princípio animalesca (mordidas com uma frequência muito acima do razoável e mais do que razoáveis), depois apenas triste (ela trabalha o último pau que vai ter na vida jogando a boceta na cara dele num meia-nove inusitado e ele não sabe muito bem o que fazer com a coisa toda e ela fez isso menos por querer ser chupada e mais para que ele não a veja chorando outra vez) e, afinal, técnica (ela o cavalga e logo ele goza e ela se deita sobre o peito dele e, mesmo ele nunca tendo feito aquilo, a coisa toda tem cheiro e gosto de rotina).
ADEUS, ESTRANHO
Ela está com a cabeça e a alma no seu destino irremediavelmente próximo (anunciado), estupidamente presente, mais palpável até do que o garoto, do que a foda, do que todo aquele maldito lugar.
Ela o beija na boca e sorri.
Ele ainda está tentando sacar o que aconteceu. Vestem-se, ela sorri e ele sorri.
Despedem-se com beijos nos rostos, ele pensando que talvez o deixem entrar para a terceira aula.
E vai.
NÃO É O CASO
Encolhida na privada, ela limpa a porra deixada na boceta com a própria calcinha e pensa se não é o caso de abreviar a brincadeira.
Não.
Não é o caso.
Esperar ali.
E que se foda.
II
JÁ ME SINTO BEM MELHOR
Mas não é por falta de fé ou de atenção que a garota, tendo já fechado os olhos e jogado os cotovelos sobre a mesa no instante imediatamente posterior ao que a garçonete colocou à frente dela e de seu acompanhando os pratos com os sanduíches e os dois copos com suco de laranja com gelo & açúcar e perguntou a ela e ao acompanhante se queriam mais alguma coisa e ante as negativas de ambos disse com licença e voltou para detrás do balcão, enfim, não é por fata de fé ou de atenção que a garota não sabe como começar.
Quer falar com Deus ou, ao menos, tentar, mas o gosto na boca é o quem lambeu as costas e o traseiro do diabo e engoliu a saliva. O diabo fazendo hora, como sempre. Ela sabe que até o fim da vida o gosto só vai piorar, mas exerce o seu direito de juntar as mãozinhas, fechar os olhinhos e resmungar qualquer coisa assim supostamente elevada (é, crueldade) para as próprias pálpebras fechadas: de si para si. Não que ela esteja pensando para valer em si mesmo ou em Deus, não, o lance é apenas se concentrar nas palavras e ver se sai alguma coisa desse pseudomonólogo insano e pretensamente deiforme. Então, ela se arrasta ruidosamente de um canto a outro da cabeça, um salão desprovido de janelas onde cadeiras são arrastadas ininterruptamente e pequenos, quase imperceptíveis suicídios são cometidos pelos cantos a cada sinapse desperdiçada na busca por Ela, sim, pela Palavra.
Fora dali (da cabeça da moça), o acompanhante ignora aquela (dela) posição estou-pensando-em-deus-estou-pensando-no-amor e morde o sanduíche como se fosse dar cabo dele em no máximo outras duas abocanhadas similares. E é no meio da segunda mordida (dele) que ela pensa que porra!, não lembro direito da ordem, do que vem depois do quê, de como é que se organiza essa coisa e daí que pode dar errado se eu não seguir o script direitinho, mas foda-se!, lá vai:
Painossoqueestaisnocéusantificadosejaovossonomevenhaanósovossoreinosejafeitaavossavontadeassimnaterracomonocéueopãonossodecadadianosdaihojeperdoaiasnossasofensasassimcomonósperdoamosaquemnostemofendidonãonosdeixeiscairemtentaçãoelivrai-nosdetodomal, AMÉM.
No momento em que ela diz AMÉM, ele, mastigando, pensa AMÉM, e pensa ainda que falar e pensar com a boca cheia são coisas muito parecidas, a voz interior pastosa e ininteligível como seria se a exteriorizasse, sílabas cuspidas com pedaços de hambúrguer e ervilhas feito pequenos anjos verdinhos, e, no que diz AMÉM, ela abre os olhos e o encara.
— Acha que eu faço?
— O quê?
— O sinal.
— Que sinal?
— O sinal da cruz.
— Faz quem quer.
— Não é bem assim.
— Você é católica?
— Sempre quis ser.
— Isso deve bastar.
— Tecnicamente, eu sou.
— Como assim?
— Fui batizada e tal.
— Sua mãe fez questão.
Então, tecnicamente, ela faz o sinal pensando em Jesus esbagaçado na cruz e em crianças e bebês nos braços das madrinhas enfileiradas em direção ao altar e ao líquido benzido e todos berrando que é pra Deus ouvir, e no momento em que ela emnomedopaifilhoedoespíritosantoamém, como era de se esperar: nenhum milagre, nenhuma desgraça no silenciosíssimo quarteirão.
Findo o processo católico apostólico romano, ela se concentra no sanduíche, mas não sem antes atestar que:
— Já me sinto bem melhor.
VERIFICAÇÃO CÍCLICA DE REDUNDÂNCIA
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, em edição vagabunda comprada uma semana antes numa banca de revistas por míseros doze reais, e nenhuma daquelas palavras, lidas isoladamente ou em conjunto, nenhuma delas significava nada para ela, e, no entanto, comprara o livro e vinha lutando com e contra ele com todo um esforço de imersão, toda uma boa vontade para com aquela que mais lhe parecia uma língua estrangeira, incorpórea, alheia, alienígena.
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, sentindo ainda as circunvoluções da própria (de quem mais) boceta (na qual, poucas horas antes, metera o garoto, ou parte dele) e do estômago aparvalhado diante do que logo ocorreria, quando decidiu que trepada, sim, tinha sido boa, e, dadas as circunstâncias, só agora ela viu e viu que era (tinha sido) bom, boa a coisa, e ela pensa que não devia ter chorado — ela pensa que não, e não na frente dele.
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, quando, horrorizada, percebeu que não se lembrava mais do rosto do garoto, do pau dele, sim, mas não do rosto, o rosto que beijara e lambera tanto quanto o pau, o rosto que confundira com uma simples cadeira que por acaso ou por uma piada infame (Deus?) lhe dirigira a palavra de repente (Deus…) para lhe trazer as piores notícias possíveis (Deus!).
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, quando lhe ocorreu ter gozado junto com o garoto-sem-rosto que iniciara tão sem-cerimoniosamente, o rosto tomado por lágrimas, o coração dele aos pulos e a alma dele como que dependurada no pau feito uma toalha que alguém colocara ali para que ela enxugasse a sua própria; ele, tão novo e tão direto, um atropelo hormonal indeciso entre o clitóris e os grande lábios, atabalhoado, ansioso, mas que a fizera gozar e se esquecer e se lembrar outra vez, agora para sempre.
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, e sentiu as pernas estremecerem como se pedissem por mais uma visita do nobilíssimo mensageiro que lhe socara goeladentro as piores notícias e que ela tratou logo de socar bocetadentro como se uma coisa anulasse a outra, como se assim matasse o mensageiro e a mensagem e os visitantes que, bem, ela
estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, quando o coroa bem-vestido e de cara amarrada e uma garota cujo rosto parecia tomado por todo o enfado do mundo entraram e se sentaram à mesma mesa que o garoto escolhera horas antes e pediram dois sanduíches e dois sucos de laranja, gelo & açúcar, e ela os atendeu e serviu, e a garota, comicamente, uniu as mãozinhas e, após um momento, desandou a rezar.
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, quando os viu entrando, e sentiu primeiro uma tontura imbecil, e depois uma estúpida e urgente vontade de mijar, a qual não tratou de aliviar, e respirou fundo, fechou o livro e foi até a mesa em que eles se acomodaram e perguntou, voz funda de terror:
— O que vão querer?
Está atrás do balcão, expressão esvaziada na cara, brinca de supergêmeosativar e assume a forma de uma pacatíssima vaca; já que não dá a mínima — o que não quer dizer que não sinta medo ou terror ou mesmo a velha vontade de mijar — e trata de se ocupar traçando linhas, umas sobre as outras, num guardanapo com uma esferográfica vermelha, enquanto pensa que pode ser a qualquer momento, que pode ser no próximo segundo, que pode já ter sido, e quem seria se já tivesse sido!
Mede-se o tempo com a Luz. Ela viu a Luz quando montada no garoto, um pouco antes e um pouco depois.
Seu tempo é mesmo curto, afinal.
PRIMEIRO, RAPIDAMENTE
Lote cercado por pedaços de muro. Lados inteiros caídos para dentro ou para fora, montes de tijolos quebrados, um lixão logo adiante disfarçando o cheiro de mijo e de vômito que ela exala. Ela: ajoelhada no fundo do lote. Acabou de se ajoelhar. A garota em pé logo atrás dela. O coroa sequer saiu do carro e pensa seriamente em acender um cigarro no momento em que é dado o primeiro tiro. No alto da cabeça. Estilhaços de dentes e de crânio voam direto para o chão e para os lados. Colorindo o mundo e a vida. Outros cinco, todos nas costas. A garota dá meia-volta, até o carro e é bye, bye.
AGORA, COM ALGUMA CALMA
No que as pernas não responderam de todo, foi arrastada primeiro para fora da lanchonete, depois para o carro, e de carro até o meio do nada, e, uma vez no meio do nada, para fora do carro, quando se desequilibrou e deu com as fuças direto na terra, e
— Porra!
vomitou um portentoso jato amareloesverdeado justo nos pés da garota que já a puxava pelos cabelos a fim de colocá-la de pé.
Caminhou molemente, empurrada pela garota, olhando estritamente para o chão, os neurônios enlouquecidos a ponto de se ver e sentir atravessando um corredor polonês particularmente ensandecido, uma turba logo acima numa espécie de arquibancada improvisada sobre os restos do muro, vaiando e gritando. Não levantou a cabeça por nada, e a multidão de espectadores só calou no momento em que sentiu o cano da arma no alto do crânio, entendendo que, estourada aquela cabeça que habitava e contra a qual zurrava, ela, multidão, desapareceria também.
Não fechou os olhos.
Arregalou-os até o embaçamento total das vistas, gradativamente cega até o estouro fatal.
UMA FLOR QUE SE ABRE
Uma flor que se abre: para quem observa assim de fora, a impressão é de que a cabeça estoura de dentro para fora, o que é verdade, na medida em que a bala, tendo entrado no topo do crânio, sai detonando a mandíbula e o que mais houver abaixo, numa festa barulhenta de cores e de sons e de líquidos.
GÊNESIS
Os cinco tiros nas costas: nada que os justifique, certo? Não. Imagine a Criação. Tivesse Deus dado conta de tudo no primeiro dia, teria os seis dias seguintes para foder com a coisa toda. Porque, e isso só Deus sabe (e agora eu e você), a perfeição é indecente. Por mais que a Criação tenha inaugurado um processo complexíssimo que, no nosso planeta de merda, redundou, num dado momento, no Homo sapiens.
Então, a garota e a garçonete: duas Homo sapiens. Uma explodindo, a outra sendo explodida. Ambas (convenhamos) não muito satisfeitas com a situação. Daí que talvez seja o caso de rever o termo INDECENTE. No caso específico do que está sendo narrado, INDECENTE seria:
a) o crime (homicídio);
b) a causa do crime (ignorada);
c) o fato de a garçonete, sentada na privada depois de trepar com o garoto limpando a porra deixada nela por ele, ter optado por esperar;
d) os tais cinco tiros, todos dispensáveis (nada profissionais, portanto;
e) T.D.A., incluindo a mais anterior de todas, ou a anterior a todas elas, isto é, a Criação.
GABARITO
Caso o leitor tenha assinalado a letra “e”, estamos conversados, pois é exatamente disso que se trata.
E DO QUE É QUE SE TRATA, AFINAL?
Aquilo de enxergar uma escrotidão desgraçada em tudo e todos. Todos animais. No caso específico do que está sendo narrado: trata-se de NÃO dar o fora, de levar um tiro na cabeça e outros cinco no lombo, de assistir à própria assassina juntar as mãozinhas e rezar antes de comer, de, enfim, celebrar toda a aventura e beleza e grandiosidade humanas inerentes a todos esses momentozinhos.
EM RESUMO
Em resumo, toda a Criação resumida num dedo que aperta o gatilho e numa cabecinha que explode, e
AMÉM
Amém.
E ENTÃO
Seis perfurações de balas, o corpo bem detonado. Especialmente a cabeça, espalhada pelo lugar: um lote abandonado, o muro caíderrubado aqui e ali. Fragmentos de dentes e do crânio perto do muro e no próprio muro, no mato, na terra e pelo ar (respire fundo e tire a prova). As costas muito bem premiadas, cinco furos atrás e um enorme na frente. O tronco grudado no chão de tal forma que não se sabe o que é roupa, o que é couro, o que é carne, o que é terra. Uma mulher. No lugar dos peitos, a tal cratera. Vestido de terceira, deixaram os sapatos: execução. Os joelhos dela, ela se ajoelhou e então BANG, primeiro uma (cabeça), depois cinco vezes (costas). Os joelhos dela e a terra remexida debaixo deles, como se os usasse para cavar a própria cova. Menos de quarenta anos. Traseiro mais ou menos firme. Branca, sem calcinha. Foram profissionais. Longe do centro, de qualquer lugar habitado, próximo de um lixão. O lugar em que ela teve lugar. Um professor de Biologia e sua turma em excursão pouco ortodoxa ou ortodoxa demais pelos dejetos do Ocidente, seus próprios. Um casalzinho desinteressado escapuliu até o lote. Ele chupava os peitos dela, escorados num pedaço de muro, quando ela viu. Um corpo detonado de mulher, pedaços dele e de coisas dele (do corpo) por toda lado: fisiologia ao invés de ecologia. Céus e terra passarão, mas cérebro, sangue, couro e vísceras — não. Claro que ela gritou, e, no que gritou, assustou o rapaz que, assustado em pleno ato de sucção, sugou com mais força do que deveria — o que a fez BERRAR. Ela, com ânsia de vômito, e ele, com os olhos no cadáver e o gosto dos peitos ainda vivíssimo na boca, e ela quase se esquecendo de descer a blusa, pois a turma vinha correndo, o professor atrás pedindo calma gente calma. A polícia chegou meia hora depois de chamada, falou com o rapaz, com a moça e com o professor e depois mandou todo mundo dar o fora. Corpo e coisas transportados para o IML. Enterrada como indigente dias depois. O tipo de coisa que acontece, que todo mundo quer e não quer ver e saber. Evento orgânico em mundinho de plástico.
…………
(*) Conto originalmente publicado na coletânea homônima.