Resenha publicada no Estadão em 17.05.2014.
O romance Aspades ETs etc. foi o primeiro do também poeta e cineasta pernambucano Fernando Monteiro. Escrito em 1995, ano em que se celebrou o centenário do cinema, saiu primeiro em Portugal, em 1997, pela extinta Campo das Letras, e apenas em 2000 ganharia uma edição brasileira, pela Record. Agora, é relançado em formato digital pela Cesárea no momento em que o autor afirma estar abandonando a escrita de romances, uma vez que o gênero estaria trivializado ou mesmo banalizado pela chamada “autoficção” e também pela incidência de cabeças falantes televisivas, celebridades, humoristas e sabe-se lá o que mais arriscando suas narrativas.
Em entrevista ao Diário de Pernambuco, publicada em 31 de março de 2014, Monteiro foi taxativo: “Deixar de usar a imaginação na literatura é imperdoável”. E Aspades, que em sua maior parte se apresenta como um falso ensaio sobre a vida e os filmes de um fictício cineasta português, é, sobretudo, um tremendo esforço de imaginação.
O narrador nos apresenta Vasco Aspades do Carmo, descreve as “circunstâncias perfeitamente banais” em que se conheceram, em Lisboa, no começo dos anos 1970, o desconfortável primeiro encontro e a amizade que nasce e cresce pela troca de cartas e, depois, a partir e em torno dos filmes, realizados e/ou apenas sonhados, do diretor.
Monteiro não se limita a emular a prosa ensaística, permitindo que a voz do personagem-título invada o texto. Tal invasão se dá, por exemplo, mediante trechos de entrevistas, conversas gravadas, anotações, artigos, excertos de roteiros e narrativas literárias (Aspades também é autor, dentre outras coisas, da novela Ostiense, na Volta, que o revelou como “um genuíno talento literário, desses que surpreendem pela extrema segurança logo na primeira experiência”). O romance é construído por meio dessas ramificações e emaranhamentos, a tal ponto que o narrador se confunde com seu personagem e a memória de um reste entrelaçada à do outro. Há, portanto, ficção se sobrepondo à ficção, histórias saindo de dentro de histórias e filmes refletindo outros filmes ou livros, como O Falso Facato (primeiro longa do diretor) relativamente a um conto de Hawthorne.
Nesse entrelaçamento, as cidades também se sobrepõem, seja a Lisboa de um ou de outro, seja a Berlim Oriental na qual Aspades voluntariamente se perde a certa altura para emergir com a narrativa de vários encontros, com uma mulher, com as esculturas expostas no Pérgamo, seja a “cidade morta” Ravena, sobre a qual realiza um curta “quase perfeito”, onde “a narração sensível, talvez um tanto literária demais nas imagens competindo com as do filme” corresponde a uma das melhores passagens do romance.
No terço final, Monteiro extrapola ainda mais as regras desse jogo de sobreposições. Utilizando um conto escrito por Aspades (sob pseudônimo) como trampolim, “Tênis brancos”, o romance salta para outras narrativas, como um filme que se desdobrasse noutros, uma tela se dividindo em várias. Em “Transit”, por exemplo, tal desdobramento é enriquecido por uma série de avanços e recuos, desenvolvimentos possíveis do que é contado.
Para quem fala em “esgotamento” da forma do romance, Aspades ETs etc. exibe inúmeras maneiras como tal esgotamento pode se expressar. É realmente uma pena que um autor com tantos recursos tenha optado por se ausentar. A riqueza uterina de uma prosa como a de Fernando Monteiro é o melhor antídoto contra a pobreza lamurienta, masturbatória e solipsista que se disfarça por aí de ficção.