Década

Há exatos dez anos, eu finalmente conseguia terminar um conto que julguei publicável. E, de fato, ele está entre os que eu e meu então editor Flavio Izhaki selecionamos para Paz na Terra entre os monstros, lançado em 2008. A exemplo do meu primeiro romance, Hoje está um dia morto, que eu começaria a escrever no ano seguinte, “Você não quis dizer nada” era, em sua primeira versão, um roteiro. O curso de cinema chegava ao fim e eu percebia, com certa dor e alguma dramaticidade (ou vice-versa), que o meu caminho não era por ali. As palavras, então, deixavam de ser um meio para se tornar um fim.

Indiana C.

VOCÊ NÃO QUIS DIZER NADA
Um conto.

Está passando da hora de dar o fora dali. Ela sabe que a mãe vai encher o saco e mesmo assim não dá a mínima. Sentada na beira da cama, calça um tênis e depois o outro e quando termina esfrega o rosto com as duas mãos pensando que ganharia muito mais se fechasse as cortinas e se livrasse de toda a roupa e dormisse até a próxima era glacial, a qual, segundo um texto complementar de seu livro de Geografia, pode não estar tão distante assim. Olha o céu cinza-claro, as pontas de um ou outro prédio e o barulho um tanto disperso, longe, da zorra urbana lá embaixo. Um diabo de dia feio de dezembro, o mundo a três semanas do Natal e ela a quatro passos da janela.
Ela abaixa a cabeça e encara o chão.

A mãe, sentada à mesa, folheia uma G Magazine, assinatura-presente do pessoal da repartição. Não teve coragem de recusar.
— Vai se atrasar — diz.
Enfeada por duas décadas de um casamento ruim, cretinizada por centenas de livros de autoajuda, encurralada por uma filha tão visceralmente oposta a si e seca por dois maços diários de cigarros de terceira, ela encara cada pau em cada foto da revista com aquele nojo medido e distanciado facilmente traduzível na mais franca frustração. Em outras palavras: com saudade do que nunca teve de fato, posto que sempre agiu como se não precisasse (realmente, muito) daquilo. Não que seja ou tenha sido estúpida. Ela apenas nunca soube nem procurou saber do que realmente precisava.
— Por que demorou?
— Tava na janela.
Ela vê a mãe de um jeito que a mãe não se vê. Mas o problema é que, mesmo vendo o que vê, ela não dá a mínima ou ainda não sabe que dá.
— Na janela?
Toma um gole de suco. — É.
— Fazendo o quê?
Outro gole antes de: — Pensando.
— Pensando no quê?
Mastiga e engole uma bolacha. E desfere:
— Pensando em pular, ué.

Uma bem aparada barba grisalha. Um bem-apanhado jeito de ser e de falar e coisa e tal. Terno claro sobre camisa azul-marinho. Um aquário na sala de espera. CDs de jazz e de música clássica.
— Eu não queria ter vindo.
— E por que veio?
— Minha mãe.
— Ela te obrigou?
— Mais ou menos.
Breve silêncio de “humm”. — Quer falar dela?
— Não tem o que falar.
Suspira. Outro breve silêncio de “humm”.
— É um saco isso — ela diz mais para si mesma.
— O quê? Falar?
— É. Às vezes. Eu nunca gostei. Nunca quis dizer nada.
— Você nunca quis dizer nada?
— Nem sempre interessa muito.
— Para quem ouve?
— Não. Para quem fala.
Ele sorri. Está realmente interessado nisso? Duzentos paus a hora. Mais ou menos isso. Então ela sorri. Ela tem uma ideia e sorri. Ele talvez saiba que ela teve uma ideia. E continua sorrindo. Daí que ela para de sorrir. E diz:
— Meu pai. Meu pai é meio louco.
Pausa. Suspira.
— Ele abusava de mim.
Que segurança é essa na voz, que destemor?
— Dos meus seis anos até… até os catorze. Entende?
Ops. Não mais silêncio de “humm”.

(Senhor Deus. Não sei se acredito no Senhor. Sou muito nova ou muito cretina para acreditar no que quer que seja. Mas não tenho mais nada e vou Lhe falar assim mesmo. É maravilhoso não ter explicar nada, o Senhor sabe disso melhor do que ninguém. Não sabe? Hoje, por exemplo. Hoje eu menti. Mas e daí? Uma mentira que veio assim de lugar nenhum, assim como eu, o Senhor, todo mundo. E, hoje, como aliás todos os dias, eu quis assim uma morte que não veio de lugar nenhum. Sou igual a todo mundo, por que não? Não importa. Importa é que cheguei a alguma verdade graças a essa mentira, como se minha dor e minha estranheza ganhassem um corpo e um nome e agora eu pudesse sair com elas por aí, de mãos dadas. Meu pai que me perdoe, não o Senhor. Amém.)

— Estava com o namorado?
— Não. Cinema.
— Viu o quê?
— Uma comédia.
— Engraçada?
— Nem sempre?
— …
— …
— Seu psicólogo ligou.
— …
— Que merda você foi dizer pra ele?
— … eu…
— Porra!
— Eu não sabia… não tinha o que dizer.
— Ficasse calada, então!
— …
— Por que… por que você não disse o que acontece?
— …
— Por que não disse?
— E eu sei lá que merda acontece?
— …
— …
— Na minha cidade, tinha uma louca que tirava toda a roupa, sentava num banco de praça e declamava poesia aos berros até a polícia chegar.
— Eu odeio poesia.
— E gosta do quê?

O pai. Em muitos sentidos, e não apenas nos óbvios, o oposto da mãe. Não tão “humano”, por exemplo. E previsível. Sempre o mesmo restaurante, nas mesmas datas (primeira quinta-feira de cada mês) e vinte minutos atrasado.
— Lendo o quê? — e a beija na testa.
— Hegel.
— Não é muito nova pra Hegel? — sentando-se.
— Não sei. Talvez ele seja muito novo pra mim.
O pai. E a observa marcar a página e fechar o livro com gestos exageradamente lentos.
— Triste?
— Mais ou menos.
— Consegue comer?
Um sorriso: — Nunca se sabe.
— Sua mãe dizia isso o tempo todo.
— Ainda diz.
— Quando?
— Quando não tem o que dizer.
Arroz branco. Peito de frango empanado. Suco de acerola. Salada. E o pai diz que: — Estou namorando.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Mesmo mesmo?
— Sim.
— Uau. Gosta dela?
— Mal a conheço. Pode ser que sim.
Ela sorri. O que mais poderia fazer?
— Desde que sua mãe e eu nos separamos eu estava sozinho.
— Até antes. Né?
O suco aguado. Fritaram demais o frango. Sempre comem ali porque é o restaurante mais próximo do consultório dele. E o pior num raio de oitocentos mil anos-luz.
— Minha mãe me fez ir a um psicólogo.
— Eu sei. A conta vem pra mim.
— Ela tem me achado estranha.
— Como?
— Diz que não consegue mais conversar comigo.
— E desde quando isso é importante?
— O quê?
— Conversar com você. Isso é tão importante assim?
Alfaces desidratadas.
— Falei pro psicólogo que você abusou de mim. Sexualmente. Dos meus seis aos catorze. Anos.
O pai sorri: — E se arrependeu?
— De ter mentido? Não?
— Então qual é o problema?
Ele está certo. Ou não. Mas é seu pai.
— Continue estranha — ele diz.

A porta da sala destrancada, a mãe não está na cozinha. Ela caminha por todo o apartamento. No seu quarto, depara-se com a janela escancarada. Senta-se na cama. Cogita gritar. Então, um som de descarga. A mãe sai do banheiro arrumando a saia. Ela encara a mãe.
— Pensei que você tivesse pulado.
Ao que a mãe: — Nunca se sabe.

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