Alguns parágrafos sobre 'Argo'.

Em novembro de 1979, nos píncaros da Revolução Iraniana, a embaixada dos EUA em Teerã foi invadida. Durante 444 dias, 52 norte-americanos foram mantidos reféns pela Guarda Revolucionária, que exigia a deportação do Xá deposto Mohammad Reza Pahlevi (então nos EUA). Argo, terceiro longa dirigido por Ben Affleck, ocupa-se de uma operação da CIA para libertar não aqueles 52, mas outros seis que debandaram da embaixada no dia da invasão e foram se esconder na casa do embaixador canadense.

O plano mirabolante para resgatá-los era, sob qualquer aspecto, a “melhor má ideia” que a CIA tinha à disposição (sugeriu-se, por exemplo, que os seis fugissem de bicicleta até a fronteira com a Turquia; pedalar centenas de quilômetros no inverno…): disfarçá-los como uma falsa equipe de produção canadense de um filme falso a ser rodado no Irã, uma ficção-científica intitulada Argo. Affleck interpreta o agente responsável pela operação.

Argo, o filme real que temos à nossa frente, reafirma o que já constatáramos antes: Affleck, ator dos mais limitados, às vezes sofrível, é um diretor dos bons, às vezes excelente. Medo da Verdade e Atração Perigosa, seus trabalhos anteriores, deslizam pela tela que é uma beleza, sobretudo o primeiro, filmes realizados com tesão e precisão, coisa de quem está realmente interessado em trazer o público para junto de si. Cinema americano no que ele tem de melhor.

No que diz respeito a Argo, o recrudescimento atual da crise EUA-Irã, dadas as pretensões nucleares e reiteradas ameaças deste último contra Israel, é um bom momento para nos voltarmos a um passado não muito distante e analisarmos a coisa toda com um mínimo de consciência histórica. Óbvio que Pahlevi, colocado no poder graças à ajuda dos EUA, era um filho-da-puta sanguinário que passou quase quatro décadas trucidando o próprio povo no melhor estilo dos sírios Assad, pai e filho. Óbvio, também, que a tal Revolução Iraniana trouxe uma escalada em que fundamentalismo religioso e opressão política dão o tom; são tão filhos-da-puta sanguinários quanto aqueles que os antecederam.

O que Affleck deixa bem claro desde o começo, seja pelo que é mostrado, seja pelo que é dito aqui e ali: não há inocentes nessa história (em história alguma, aliás). Como diz um figurão do governo dos EUA a certa altura, Pahlevi é um canalha, mas é um canalha que está “do nosso lado”.

Colocando as coisas nesses termos, e evitando assim patriotadas e coisas do tipo, ele se sente livre para se concentrar nos personagens pelo que eles são, sem maiores ou menores “transcendências”: o agente da CIA é um sujeito meio fodido (tocante vê-lo sintonizar a TV no mesmo canal a que o filho distante (e com quem fala por telefone) assiste) e mal pago que, bem, vai fazer o que tem que fazer; e as pessoas a serem resgatadas são o que são, um bando de gente desesperada que só quer dar o fora de Teerã.

Não há “heroísmo”, pelo menos não no sentido tradicional, baixo-hollywoodiano, do termo. Affleck não abre caminho a bala, não enfrenta (e vence) sozinho oitocentos guardas revolucionários, não tortura ninguém, não é torturado, não redime pecados passados ou futuros de seu país. É um peão ousado, está certo, mas totalmente consciente de que vive num mundo de merda em que os certos estão errados e os errados, idem. Não há ingenuidade, não há condescendência ou autocondescendência, não há lamentação: as coisas são como são, e tendem a piorar.

Mesmo a bandeira dos EUA, queimada a certa altura (linda reconstituição histórica, aliás), ao reaparecer no final, tremulando em solo norte-americano, não traz nada de triunfalismo, não oferece qualquer segurança. O que ela faz é reiterar a precariedade da coisa toda, a ideia de que, seja quem for e esteja onde estiver, ninguém está seguro. Nunca estivemos.

.