Texto publicado n’O Estado de São Paulo em 21/09/2013.
Dentre os autores do chamado “século americano”, Ernest Hemingway ainda é um dos mais populares. O relançamento de sua obra pela Bertrand Brasil, com novo projeto gráfico, é uma ótima oportunidade para revisitá-lo ou, se for o caso, conhecer o “homem das corridas de touro e dos safáris”, nas palavras de Eugenio Montale no poema Duas prosas venezianas. O primeiro volume a voltar às livrarias, conforme noticiado pela coluna Babel na semana passada, é O Velho e o Mar. Ainda em 2013, também será relançado Paris é uma Festa. Para o ano que vem estão previstos mais títulos, incluindo Adeus às Armas e O Sol Também se Levanta.
Agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1954, Hemingway acabaria se matando com um tiro de espingarda no verão de 1961, em sua casa na cidadezinha de Ketchum, em Idaho. Estava a poucas semanas de completar 62 anos. Montale (aliás, outro nobelizado) termina o poema dizendo que ele, “tendo morrido duas vezes / teve o tempo de ler seus necrológios”. Explica-se: em 1958, correu pelo mundo a falsa notícia de que o escritor teria cometido suicídio em seu iate. A exemplo do sueco Andreson, personagem de um de seus melhores contos, “Os assassinos”, o “urso” pôde, de certo modo, irrelevar a própria morte antes de finalmente optar por abraçá-la.
A popularidade de Hemingway não se deve apenas ao fim trágico ou à aura de machão em geral associada aos seus gostos (caçadas, touradas, bebedeiras e mulheres, mais ou menos nessa ordem) e feitos (esteve no front na Primeira Guerra Mundial e na Guerra Civil Espanhola). Por mais que essa virilidade vintage não esteja mais na moda, é inegável que uma existência tão atribulada ainda tenha o seu charme. Mas, ao lhe conferir o Nobel, a Academia Sueca se referiu não ao seu caráter aventureiro e turbulento, mas à influência exercida na prosa contemporânea.
Simples, direta, sem firulas, sua forma de escrever dá uma impressão de “facilidade” que não poderia ser mais enganosa. Não é por acaso que tantos cometam o erro de tentar emulá-lo. O próprio Hemingway caiu nessa armadilha. Seus últimos escritos são uma tentativa maneirista de recuperar o frescor e a potência dos melhores dias, nos quais produziu maravilhas como, por exemplo, os romances O Sol Também se Levanta e Por Quem os Sinos Dobram, além de um bom número de narrativas curtas que estão entre as mais brilhantes já escritas em língua inglesa.
A prosa de Hemingway é um exemplo acabado do que de melhor o modernismo nos trouxe. O tom alusivo, de uma economia estonteante, consegue obter o máximo de efeito com um mínimo de recursos. Há um controle espartano dos elementos descritivos, e não é raro (como em “Os assassinos”) que o mais importante seja, quando muito, apenas sugerido. É o tão propalado clichê sobre a ponta do iceberg: a maior parte encontra-se submersa. E, sendo ou não um clichê, descreve com precisão uma característica crucial de seu estilo.
Outro fator escorregadio está na maneira como são utilizados os diálogos. É curioso como, embora conversem bastante, os personagens de Hemingway digam tão pouco. Há que se ter ouvidos para o que não é dito e permanece nas entrelinhas. Não raro, há um abismo (moral, espiritual, afetivo, humano) atravessando os diálogos; quanto mais falam, mais os personagens denotam a inutilidade de falar e sublinham uma incomunicabilidade que parece impossível de ser contornada. No limite, é como se essa esqualidez narrativa desse conta, pela sua própria constituição, da esqualidez existencial dos indivíduos.
Essa conformidade extrema entre forma e conteúdo, melhor observada nos contos que nos romances, é uma das marcas mais evidentes da literatura de Hemingway. Mais do que isso, é um modo atualíssimo de se referir a um mundo cuja fragmentação cresce exponencialmente. Em meio ao palavrório desenfreado e ao tsunami de estímulos e informações que nos afoga dia após dia, nada melhor do que se refugiar numa prosa descarnada, em que cada mísera palavra tem razão de ser tanto pelo que diz, quanto (e sobretudo) pelo que não diz.