Trecho do meu romance
Como desaparecer completamente
[Rocco, 2010].
Minha primeira namorada: Cecília.
Vizinhas, famílias vizinhas. Crescendo juntas. Todo mundo, depois de um certo tempo, ora, todo mundo sabia. Mas, claro, não se comentava. As meninas trancadas no quarto. As meninas o tempo todo juntas. As meninas, tão amigas. Dezoito anos. Claro, uma relação aberta. Mas 18 anos. No que a piada, ela pensa e começa a rir no meio da rua, a piada, corretíssima: dykes não têm casos, não ficam, não enrolam, não; dykes se casam.
As famílias em suas respectivas salas, em seus respectivos sofás, diante de seus respectivos aparelhos de televisão, não comentando. Filhas únicas. Tomando todo o cuidado do mundo para não comentar.
Não.
Não as famílias. A família de Cecília, apenas. Porque a família de Augusta: ela e a mãe, e só. A mãe, mesmo não comentando, jamais as censurou. Um outro tipo de silêncio. Um silêncio que não machucava, diferente do silêncio dos pais de Cecília. O silêncio confortável de sua mãe contraposto ao silêncio áspero, pontiagudo, dos pais de Cecília.
Completaram 18 e foram morar juntas. Não têm casos, não ficam, não. Casadas, sim. Uma relação aberta, mas Cecília advertia:
“Com quem você quiser, menos com homens, por favor.”
Sem problemas. Nunca teve mesmo (muito) interesse. Ou curiosidade. Tão amigas. Até que a morte as separe. Quase vinte anos sob o mesmo teto, dos 18 aos 36, e, antes, quando eles não comentavam, dois anos de educação lesboafetiva. Até que.
Ora, não era para sempre? Como você pôde?
Cecília naquele quarto, naquela cama. Martirizada, feito o quê? Uma santa. Dizendo pouco antes de:
“Acontece com todo mundo.”
E aconteceu com ela, Cecília.
“O tempo todo.”
Nosso primeiro beijo, pensa: Foi bom.
Nosso último beijo, pensa: Foi só meu.
O primeiro beijo foi na pré-escola, as tias assustadas, irritadas, não sabendo o que fazer. Dizendo:
“Não pode, não. Vocês duas, menininhas. Não pode beijar na boca, não. Ouviram? Não pode, viu? É feio.”
Ela e Cecília, de mãos dadas:
“Sim, entendemos.”
O primeiro beijo, mas e o último?
O último, ela pensa: O último foi só meu.
Aquele barulho estranho, o traço no monitor e o médico entrando esbaforido e fazendo o possível, estão sempre fazendo o possível, e dizendo em seguida:
“Fizemos o possível. Sinto muito.”
Ela então se abaixou e colou os seus lábios nos de Cecília:
“Adeus, mulher.”
Acontece com todo mundo. O tempo todo. Mesmo quando fazem o possível. Mesmo com todos eles fazendo o possível, acontece.
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