Elogio da partida

O sobrevivente de Buchenwald sobe ao convés do navio e nos deparamos com a Estátua da Liberdade enfocada de cabeça para baixo e de lado, nunca, jamais, em pé, como, por exemplo, na cena da chegada em “O poderoso chefão – parte II” (a subversão de Coppola se dá em outro nível, ao apresentar a atividade mafiosa como o suprassumo do capitalismo). Assim, com a Estátua da Liberdade furando os lados da tela, começa “O brutalista”, de Brady Corbet. A estupenda trilha de Daniel Blumberg martela e martela e martela; a impressão é de que não chegamos a um país, chegamos a um canteiro de obras, com tudo o que isso traz de bom (trabalho, muito trabalho) e ruim (trabalho, muito trabalho, humilhação, desconforto, sujeira, sofrimento e o escambau).

Depois, quando já atolado no canteiro de obras com o protagonista, lembrei-me da fala de Brad Pitt na cena final de “O homem da máfia” (“Killing them softly”, adaptação do livraço “Coogan’s trade”, de George V. Higgins): “Os Estados Unidos não são um país, são um balcão de negócios. Então me paga, porra!”. O filme de Andrew Dominik foi lançado em 2012, mas o enredo se passa em 2008, quando a bomba dos subprimes estourou e Barack Obama foi eleito para a Casa Branca pela primeira vez. Naquela cena, aliás, é noite de eleição e o vitorioso Obama está na TV reiterando a cretinice patriótica e sentimentalista de sempre, incluindo as “belas palavras” de Thomas Jefferson que o personagem de Pitt, sem pestanejar, ridiculariza. Comunidade? Aqui?

Em “O brutalista”, ainda não há sinais físicos ou materiais da decadência registrada em “O homem da máfia”. Claro que não. Estamos no imediato pós-guerra, os Estados Unidos são uma potência nuclear e econômica, tudo ali é (vendido como) possível, o Sonho Americano e coisa e tal. László Tóth (Adrien Brody), arquiteto formado pela Bauhaus, judeu sobrevivente da Shoah, é acolhido pelo primo Attila (Alessandro Nivola), que chegou aos EUA no período entreguerras e se aclimatou, casou-se com uma católica, é proprietário de uma loja de móveis, tudo nos conformes. A noção de “propriedade” é importante, pois, numa festinha familiar, Attila meio que empurra a esposa nos braços de Tóth, mas este (exceto por mijar com a porta aberta) até que se comporta razoavelmente bem. Claro que, quando as coisas saem um pouco dos trilhos, o primo acusa o recém-chegado de dar em cima da mulher e o expulsa de casa.

Na rua, estão os abrigos, a fome, os subempregos, a heroína. Mas Tóth é resgatado por um ricaço, Harrison Lee Van Buren (Guy Pearce), que lhe oferece casa, comida & trabalho, encomendando uma obra monumental. Esse pretenso salvador branco também mexe os pauzinhos para que a esposa e a sobrinha de Tóth (a família foi separada pelos nazistas) emigrem para os EUA. Óbvio que o salvador se revela um abusador, a terra das oportunidades se mostra uma terra de oportunidades para foder com o protagonista, e o filme avança rumo à desoladora constatação de que, para cidadãos de segunda classe (assim tratados por quem chegou antes), a melhor opção é dar o fora.

Essa cadeia alimentar me remeteu aos embates entre as “Gangues de Nova York”. No (ótimo, mas inacabado) filme de Martin Scorsese, é engraçadíssima a indisposição dos “nativistas” (basicamente, um pessoal que chegou aos EUA alguns barcos antes dos outros) para com os recém-aportados. Eles vão ao porto para xingar, apedrejar e cuspir naqueles que desembarcam. Claro que todos vivem em um mesmo caldeirão miserável (inesquecível a visão do cortiço subterrâneo logo no começo do filme) e se matam por trocados e algumas esquinas, enquanto os aristocratas ignoram tudo isso e vivem no luxo a alguns bairros de distância. O gueto continuará sendo o gueto, e a Park Avenue continuará sendo a Park Avenue.

Scorsese, aliás, mostrou os dois lados: no irretocável “A época da inocência”, vemos o porção rica daquela Nova York nos anos 1870 (“Gangues” se passa no começo da década anterior, época de Guerra Civil; a cidade mudou bastante após os Draft Riots de 1863). Mas, perdão pelo anacronismo, o que Bill, o Açougueiro, acharia de László Tóth? E o que Van Buren acharia de Bill? Entende o que eu digo? Parafraseando Joyce, os EUA são uma porca que come os próprios filhotes e os filhotes que adota. E eu nem sou antiamericano. As coisas caminham por lá. Não obstante comer o goulash (kosher!) que o diabo cozinhou, Tóth trabalha e a obra é concluída. O que me incomoda é a conversa fiada.

É irônico que a maior violência sofrida por Tóth aconteça não nos Estados Unidos, mas em seu primeiro retorno à Europa. Anos após a guerra e a Shoah, ele volta ao Velho Mundo e ali é estuprado pelo arrojado representante do Novo Mundo, pelo distinto “benfeitor”. A decisão final de partir para uma terceira destinação é bastante compreensível, não? E, no epílogo, quando Tóth é homenageado na mesma Europa, há outras ironias subjacentes à fala da sobrinha: sim, não importa a jornada, mas a chegada, desde que a chegada não seja aqui (Europa) nem lá (EUA) — mas tão belas as obras construídas lá e aqui.

É o trabalho (sua arte) que impede o protagonista de ruir por completo. A arte não salva, mas sustenta o criador. Não falo em termos pecuniários, obviamente (embora isso também ocorra e seja importante). Eu me refiro à sustentação existencial: a completude da visão sustenta/mantém a completude do ser. “O brutalista” é uma história aterrorizante sobre desterro e despertencimento, mas não sobre despersonalização: Tóth é sempre Tóth e cada vez mais Tóth. O homem se estrepa, mas o artista (se) vinga.

Outra coisa que chamou a minha atenção é o fato de que Corbet e a corroteirista Mona Fastvold tomam emprestado o título da obra-prima de V. S. Naipaul, “O enigma da chegada” (lançada no Brasil pela Cia. das Letras com tradução de Paulo Henriques Britto), para nomear a primeira parte do filme. Naipaul explora as mudanças na percepção de um imigrante (no caso, um trinidadiano na Inglaterra). Mas, enquanto o personagem do livro consegue paulatinamente identificar as rachaduras de suas preconcepções e, assim, enxergar (e ironizar) melhor as ruínas das paisagens metropolitanas pelas quais circula (tudo é fachada, tudo são disfarces), Tóth é obnubilado pelo vício em heroína, pela suas obsessões e pela crescente violência de seu “benfeitor”.

Em Naipaul, temos o gradual desvelamento de uma realidade dinâmica e indiferente, que flui à nossa revelia, (mas?) bem distante daquelas preconcepções engessadas, ingênuas e engessadoras. Em Corbet/Fastvold, temos a embriaguez e a obsessão artística substituindo a realidade de fachada pela ultrarrealidade do pesadelo, sem escalas. O artista (se) vinga, mas o homem se estrepa. Respiro, bebê, só no epílogo.

É importante notar que Naipaul também fez um empréstimo: “O enigma da chegada e da tarde” é o nome de uma tela do pintor italiano Giorgio de Chirico. Nela, as linhas retas dos edifícios e das sombras não escondem os dois indivíduos que ali figuram. Gosto de pensar neles como um mesmo indivíduo flagrado em dois momentos sobrepostos, o momento da partida e o momento da chegada. Estão intramuros e não parece haver saída, e a vela do navio acena lá do outro lado.

Mas, se em Naipaul cresce e persiste certa rendição existencial (há quem confunda o glorioso cinismo desse autor nobelizado com reacionarismo, o que chega a ser engraçado), o filme de Corbet recusa tal paralisia. Assim, “O brutalista” é uma espécie de elogio da partida, que ali nada tem de enigmática: vim, criei, sofri, criei, sobrevivi, criei e parti para criar (e sofrer) mais. Chegadas e partidas se sucedem, mas a arquitetura do filme (“O brutalista” tem mais de 3h30 de duração, mas não há absolutamente nada que falte ou sobre em sua construção) e a arquitetura no filme conseguem fixar esse núcleo duro da beleza. Frequentei o filme e frequentei cada construção no filme.

Um elemento importantíssimo para tal fixação diz respeito às escolhas de Corbet e seu diretor de fotografia, Lol Crawley. Eles filmaram em 35mm (depois expandido para 70mm) usando o antigo processo VistaVision, por meio do qual o negativo é colocado horizontalmente (em vez de verticalmente) na câmera a fim de se obter um amplo campo de visão, mas sem as distorções produzidas pelas lentes anamórficas geralmente usadas para esse fim. O processo também oferece uma “presentificação”, visto que foi desenvolvido e muito utilizado na mesma época em que se passa a história. Assim, vemos um filme de época filmado como um filme de época — mas, claro, não montado e finalizado como um, dado o uso de IA para aperfeiçoar os sotaques dos atores etc. Não é tão simples assim viajar no tempo, afinal. Mas uma viagem é uma viagem, e “O brutalista” está entre as melhores a que me entreguei nos últimos tempos.