A VIOLÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO E NA MANUTENÇÃO DO ESTADO
EM TITO LÍVIO E MAQUIAVEL
Intro.
O itinerário deste texto se concentra sobretudo no livro I dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, nos capítulos (19 e 20, entre outros) em que o pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) aborda a importância dos príncipes fortes (belicistas) e, por conseguinte, do papel da violência na criação e na sustentação do Estado. Os alicerces de Roma, por exemplo, foram lançados e firmados por dois reinados ferozes (Rômulo e Tulo Hostílio), os quais foram entremeados por um ordenador da vida civil (Numa) que, nas palavras de Tito Lívio (1989, p. 45), refundou a cidade “com base no direito, na lei e nos bons costumes”.
Em um primeiro momento, discorrerei sobre essa distinção maquiaveliana, contrapondo-a ao tom menos belicoso adotado pelo autor da História de Roma. A narrativa acerca do reinado de Numa, tido por Maquiavel como um príncipe fraco, mas por Tito Lívio como responsável por uma contribuição muito importante para a grandeza de Roma, servirá para ressaltar o que há de diferente nessas abordagens.
Na parte seguinte, ancorado nas distinções já traçadas, abordarei a noção de um príncipe coletivo, surgido após o fim do período monárquico romano. Tanto Maquiavel quanto Tito Lívio concordam que a liberdade só se tornou possível após a instituição da república ou, nas palavras do primeiro, depois “que Roma expulsou os reis”, não estando mais “exposta aos perigos (…) da sucessão de um rei fraco ou mau” (MAQUIAVEL, 2007, p.79). Há, contudo, discordâncias entre eles quanto ao caráter da relação entre a plebe e os patrícios, sobre as quais tenciono digressionar.
Tito Lívio fala, por exemplo, em reconciliação após os conflitos que culminaram na criação dos tribunos da plebe, no século V a.C. Maquiavel, por sua vez, postula uma inexorável mecânica conflituosa, cuja administração, por assim dizer, seria imprescindível para a sustentação da república, na medida em que mantém as ambições e os desejos privados dos partidários sob controle, sem (muito) prejuízo do bem comum e do Estado.
1. Príncipes fortes e príncipes fracos.
No capítulo 19 dos Discursos, Maquiavel ressalta a imensa fortuna de Roma, que teve dois reis fortes entre os seus três primeiros governantes (Rômulo, Numa e Tulo Hostílio): “o primeiro rei foi ferocíssimo e belicoso, enquanto o segundo foi tranquilo e religioso, ao passo que o terceiro se assemelhou em ferocidade a Rômulo” (MAQUIAVEL, 2007, p. 76-7). No entender do pensador florentino, um príncipe fraco é todo aquele que não guerreia, que não se ocupa da guerra. É nesse sentido que devemos encarar a “fraqueza” de Numa, cuja importância, contudo, não pode ser diminuída, na medida em que ele atuou como um “ordenador da vida civil” (Ibid., p. 77).
Segundo rei de “uma cidade jovem fundada pela força das armas”, Numa tratou de “fundá-la novamente com base no direito, na lei e nos bons costumes” (TITO LÍVIO, 1989, p. 45). Tal refundação, no entender do monarca, não seria factível em meio a uma série interminável de conflitos armados. Assim, ele trabalhou para alcançar a paz com os vizinhos por meio de tratados e alianças, dirimindo as possibilidades de novas invasões e embates, e encontrou na religião uma forma de organizar a vida citadina e canalizar a brutalidade dos súditos:
(…) Mas para que a ausência de perigo externo e a paz não enfraquecessem o caráter daqueles homens até então contidos pelo medo do inimigo e pela disciplina militar, [Numa] achou que o meio mais eficaz seria infundir no espírito daquela multidão ignorante e ainda rude o sentimento poderoso de temor aos deuses. E como era impossível fazê-lo penetrar nos corações sem o auxílio de algum prodígio, simulou ter entrevistas noturnas com a deusa Egéria (Ibid., p. 46).
Ao que parece, em sua intenção de ordenar a vida civil, Numa percebeu que não seria possível simplesmente suprimir a violência essencial que animava o povo, sobretudo após um reinado como o de Rômulo. Nesse sentido, o temor aos deuses infundido por meio da religião (e de uma trapaça) mostrou-se uma ferramenta muito eficaz para a supracitada canalização. Sem o perigo representado pelas ameaças externas e com os instintos do povaréu sob controle, em mais de quatro décadas de reinado, Numa pôde negociar e manter os tratados e alianças com os povos vizinhos[1], e instituir as leis e instituições que julgava imprescindíveis para a cidade.
“Assim”, lemos na História de Roma, “dois reis sucessivamente, por caminhos diversos, um pela guerra, outro pela paz, contribuíram para a grandeza de Roma” (Ibid., p. 48-49). Numa desempenhou muito bem o seu papel para com a cidade, no entender de Tito Lívio. Não há, na História de Roma, qualquer ressalva ou crítica ao comportamento pacifista do sucessor de Rômulo.
Maquiavel, por sua vez, não ignora a importância de um “ordenador da vida civil” como Numa, mas entende que “depois era necessário que os outros reis retomassem a virtù[2] de Rômulo”, pois, “se isso não ocorresse, a cidade se tornaria efeminada e presa fácil dos vizinhos” (MAQUIAVEL, 2007, p. 77). Roma sobreviveu à “fraqueza” de Numa, à sua aversão à guerra e ao conflito, e beneficiou-se grandemente da organização por ele engendrada, mas talvez não tivesse sobrevivido a um sucessor que partilhasse do mesmo caráter pacífico.
Tulo Hostílio, o terceiro rei de Roma, resgatou a virtù de Rômulo, sendo “ainda mais belicoso”: ele acreditava que “a cidade enfraquecia por inércia [ócio]” e, por isso, procurou por pretextos para guerrear (TITO LÍVIO, 1989, p. 49). Desnecessário pontuar que logo encontrou o que buscava.
Conforme aponta o professor José Luiz Ames no artigo “Lei e violência ou a legitimação política em Maquiavel”, a concepção maquiaveliana afirma que um Estado só consegue manter “sua autoridade por meio de um retorno contínuo ao momento da origem”, isto é, “àquele momento da violência de Rômulo, e essa volta repõe a lei na indeterminação originária que, por sua vez, a recoloca em movimento” (AMES, 2011, p. 22). Na leitura de Ames, a violência fundadora do Estado e a violência constitutiva da lei são uma só e a mesma violência, cujo objetivo é extinguir a violência anterior e/ou marginal a tais fundação e constituição.
Em “Que é Autoridade?”, Hannah Arendt (2009, p. 184) remete à afirmação maquiaveliana sobre a necessidade de violência “para fundar novos Estados e para reformar os degenerados”. A fundação seria “a ação política central, o único grande feito que estabelecia o domínio público-político e que tornava possível a política” (Ibid., p. 184). Maquiavel teria plena consciência do caráter circular da história, bem como da corrupção inerente a qualquer Estado ou organização política. Com vistas a conter o inevitável avanço da corrupção e a consequente ruína do Estado, torna-se necessária a refundação, isto é, um retorno àquele instante originário — em se tratando de Roma, um retorno à ferocidade de Rômulo.
Sem esse retorno à violência originária, capaz de engajar toda a cidade em torno de um objetivo comum, é possível que o enfraquecimento percebido por Tulo chegasse a tal ponto que arruinasse Roma. Acostumada à paz e assim desarmada, a cidade se tornaria presa fácil para quaisquer invasores e inimigos. E, antes disso (ou concomitantemente a isso), sem um objetivo comum e ulterior, público, as ambições individuais levariam aos vícios institucionais e “pouco republicanos” (para usar uma formulação contemporânea, e pedindo desculpas pelo anacronismo), ou seja, levariam à corrupção generalizada e à depauperação do Estado.
Maquiavel sublinha que tal perigo, o de ser governada por uma sucessão de reis fracos que acabariam por destruí-la, e/ou por vários reis malvados e tirânicos, como Tarquínio, o Soberbo, pairou sobre Roma até a eleição dos primeiros cônsules — e o próprio Tito Lívio (1989, p. 105) identifica o fim da realeza com a libertação do povo romano, a partir daí “sob o governo de magistrados eleitos anualmente e sob a autoridade de leis superiores à autoridade dos homens”.
Para Maquiavel, um governante similar a Numa pode ou não manter o Estado, conforme os humores dos tempos e da fortuna (e, nesse sentido, ele teve a boa fortuna de ser antecedido por alguém como Rômulo e sucedido por Tulo), ao passo que um governante como Rômulo, “sendo como ele armado de prudência e de armas”, manterá o Estado “de qualquer modo, desde que ele não lhe seja arrebatado por força obstinada e extraordinária” (MAQUIAVEL, 2007, p. 78). Segundo esse ponto de vista, a sucessão romana possibilitou que a cidade assegurasse, por um lado (via Numa), o desenvolvimento e a sedimentação de suas leis, mas, por outro (via Rômulo e Tulo), as suas próprias existência e grandeza.
Em outras palavras, conforme a interpretação maquiaveliana, é possível afirmar que, sem os “príncipes fortes”, Roma talvez tivesse naufragado antes de alcançar a glória pela qual se tornou conhecida. Em seu período inicial, quando governada por reis e vulnerável à possibilidade de se ver submetida a monarcas fracos ou malvados, afirma Maquiavel, Roma sempre flertou com a ruína.
2. Príncipe coletivo.
Como vimos, Tito Lívio considera o povo romano livre a partir do momento em que passa a eleger seus cônsules. E, por seu turno, conforme exposto acima, Maquiavel fala na “expulsão” dos reis como o fato que libertou Roma do “perigo de ser arruinada” por um governante “fraco ou mau”:
Porque aos cônsules foi dado o poder supremo, não por herança, fraudes ou ambição violenta, mas por sufrágio livre; e eram sempre excelentes homens: Roma, valendo-se de tempos em tempos da virtù e da fortuna deles, pôde atingir o máximo de grandeza num número de anos igual ao que estivera sob os reis (MAQUIAVEL, 2007, p.79).
É possível falar, então, na substituição de um príncipe forte ou fraco, feroz ou não, por um príncipe coletivo, que elege regularmente seus representantes tendo em vista não ambições individuais, mas o bem comum da cidade ou Estado. Em termos de violência ou ferocidade, esse príncipe coletivo seria forte, sempre disposto a se ocupar da guerra (o que explicaria a expansão romana nos séculos posteriores à “expulsão” dos reis) e jamais fugindo à mecânica conflituosa ali instaurada.
Maquiavel chama a atenção nos Discursos (I,4) para o fato de que foi o caráter “tumultuário” da república romana que possibilitou a sua liberdade: “em toda república há dois humores diferentes, o do povo, e o dos grandes”, e todas as leis concebidas “em favor da liberdade nascem da desunião deles”. No extremo, não há concórdia possível, ou melhor, não existe nenhum estado de coisas ou lugar no qual vigore alguma espécie de harmonia absoluta e plena. Há sempre tensão e confronto, e isso é saudável, pois os “bons exemplos nascem da boa educação”, a qual surge das boas leis, ao passo que as boas leis advêm dos tumultos (Ibid., p. 22). Os romanos souberam lidar com esses tumultos, usando-os para aliviar os desejos e a insubmissão do povo, por um lado, e refrear a ambição dos patrícios, por outro.
Maquiavel nos alerta para o fato de que “os desejos dos povos livres raras vezes são perniciosos à liberdade, visto que nascem ou de serem oprimidos ou da suspeita de que virão a sê-lo” (Ibid., p. 23). Assim, sempre que instado a fazer algo que percebia contrário aos seus próprios interesses ou quando almejava a aprovação de alguma lei, mas esbarrava na pressão ou na recusa dos grandes, o povo reagia com ferocidade, paralisava o comércio, tomava as ruas, cercava o senado, recusava o alistamento e, em um momento particularmente tenso, chegou a abandonar a cidade. Em suma, o povo fazia o que estava ao seu alcance para ser ouvido e tomar a parte que lhe cabia na condução da cidade.
Aqui, mais uma vez, talvez seja interessante discernir as visões de Maquiavel e Tito Lívio. Ao discorrer sobre os conflitos entre a plebe e o senado e os cônsules por causa das prisões por dívidas e do alistamento obrigatório, o historiador romano nos conta o seguinte:
(…) O Senado então exigiu-lhes [dos cônsules] que procedessem ao recrutamento com o maior rigor possível, pois a ociosidade era a causa da insolência da plebe.
Encerrada a sessão, os cônsules subiram à tribuna e fizeram a chamada nominal dos jovens. Como ninguém respondesse, a multidão presente cercou os cônsules (…) e declarou que ninguém mais enganaria a plebe, que não conseguiriam mais um único soldado, a menos que o Estado permanecesse fiel a seus compromissos. Era preciso dar liberdade a todos os cidadãos antes de dar-lhes armas (TITO LÍVIO, 1989, p. 143-144).
A situação degringolou ao ponto de se tornar insustentável. Roma viu-se paralisada pelo medo e pelo terror, com todos os cidadãos desconfiados uns dos outros. Dado esse calamitoso estado de coisas, a reconciliação entre patrícios e plebeus era imprescindível para a sobrevivência do Estado. Menênio Agripa, “estimado pelo povo por suas origens plebeias”, foi escalado para apaziguar os ânimos, e o fez por meio de um discurso no qual comparou as discordâncias e conflitos em curso a um corpo humano cujos membros e órgãos se rebelaram contra o estômago, “que obtinha tudo à custa de seus cuidados, seu trabalho e serviços, ao passo que ele próprio, ocioso”, apenas gozava “dos prazeres que lhe eram dados”. Assim, a mão deixou de levar o alimento à boca, que não mais o receberia, os dentes não mastigariam etc. Foi preciso que o corpo chegasse ao esgotamento para que os membros percebessem o papel desempenhado pelo estômago na digestão dos alimentos e na sustentação do organismo.
Em sua fala, Menênio Agripa procurou fazer com que os plebeus entendessem que sua revolta contra os patrícios era análoga à do restante do corpo contra o estômago, e que se fazia necessário que cada parte compreendesse a importância da outra. Claro que, para alcançar tal concordância, foi preciso que os patrícios fizessem algumas concessões. A mais importante delas foi a criação dos tribunos da plebe, “magistrados próprios, invioláveis, que se encarregariam de defendê-la contra os cônsules” (Ibid., p. 150-151). Assim, referindo-se sobremaneira à criação dos tribunos, Tito Lívio fala em uma efetiva reconciliação entre as partes.
Em Maquiavel, reitere-se, não há reconciliação, mas, sim, a compreensão de uma desunião fundamental e incontornável. Mais do que isso, há a existência daquela mecânica conflituosa e “tumultuária” que assegura a liberdade. Ele afirma com todas as letras que, “se o estado romano se tornasse mais tranquilo, decorreria o inconveniente de tornar-se também mais fraco” (MAQUIAVEL, 2007, p. 29). Desde que essa mecânica não se torne doentia, desde que as inimizades não sejam determinadas por ambições privadas e, enquanto tais, infensas ao bem comum, o Estado tende a viver sob um ordenamento justo, saudavelmente conflituoso, uma estrutura política que não é corrompida pelos tumultos, mas animada e sustentada por eles.
09-12.2022.
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NOTAS
[1] Tito Lívio escreve sobre como Roma passou a ser vista de outro modo pelos vizinhos após a revolução religiosa instituída por Numa: “E enquanto em Roma as pessoas pautavam seu comportamento pelo do rei como único exemplo a seguir, os povos vizinhos que até então consideravam Roma não como uma cidade, mas como um campo de batalha situado entre eles para perturbar a paz de todos, viram-se obrigados a venerá-la a ponto de considerarem um sacrilégio atacar uma nação inteiramente voltada para o culto dos deuses” (Ibid., p. 48).
[2] Recorro a Hannah Arendt: “A virtù (…), segundo Maquiavel a qualidade humana especificamente política, não possui a conotação de caráter moral da virtus romana, e tampouco a de uma excelência moralmente neutra à maneira da areté grega. A virtù é a resposta que o homem dá ao mundo, ou, antes, à constelação da fortuna em que o mundo se abre, se apresenta e se oferece a ele, à sua virtù. Não há virtù sem fortuna e não há fortuna sem virtù (…)” (ARENDT, 2009, p. 182).
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BIBLIO
AMES, José Luiz. “Lei e violência ou a legitimação política em Maquiavel.” Trans/Form/Ação, v.34, n.1, p.21-42. São Paulo: Marília, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/trans/a/Db8Vskc95xdnLBddQPNNqZJ/?lang=pt
ARENDT, Hannah. “Que é Autoridade?”, em Entre o passado e o futuro. Tradução: Mauro W. Barbosa. 6ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009.
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Glossário e revisão técnica: Patrícia Fontoura Aranovich. Tradução: MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
TITO LÍVIO, História de Roma – Ad Urbe Condita Libri. Volume primeiro. Introdução, tradução e notas: Paulo Matos Peixoto. São Paulo: Paumape, 1989.