Artigo publicado em 02.03.2021 n’O Popular.
“Qualquer coisa, menos liberal”, disse a economista norte-americana Deirdre McCloskey há mais de um ano. Foi em uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (edição de 24 de janeiro de 2020), que você pode encontrar facilmente na internet. Ela se referia, claro, a Jair Bolsonaro. Não obstante a nomeação de Paulo Guedes como ministro da economia, o caráter iliberal de Bolsonaro sempre me pareceu óbvio. A estupidez da fórmula “liberal na economia, conservador nos costumes” era apenas a faceta mais visível e risível de tal iliberalidade. A própria McCloskey explicou na ocasião: “A ideia principal do liberalismo é que não haja hierarquias: homem sobre mulher, heterossexuais sobre gays ou Estado sobre indivíduos”. Ou seja, não é possível separar o aspecto econômico do sociocultural. Ou o indivíduo é liberal na economia e nos costumes, ou não é liberal. Simples assim.
No Brasil, sempre houve muita confusão a respeito do liberalismo. O governo Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, por conta de algumas privatizações bem-vindas (e malfeitas), foi taxado de “neoliberal”, o que é uma idiotice: o Estado entre 1995 e 2001 era tão paquidérmico, insustentável e obtuso quanto antes ou depois. Em governos tucanos e petistas, e agora no bolsonarismo, temos no máximo o “liberal do bolso alheio”, aquela criatura liberalíssima em relação ao patrimônio dos outros, mas que defende com unhas e dentes o direito de mamar nas tetas estatais e garantir os próprios caraminguás às custas da União. Guedes é um exemplo acabado de liberal do bolso alheio. Na verdade, tacanho e acovardado como poucos, o ministro é um exemplo acabado de muitas coisas, todas bem ruins. Nesse sentido, uma vez que as reformas e privatizações que ele propõe foram porcamente pensadas e seriam abestalhadamente levadas a cabo, é uma boa notícia que Bolsonaro o tenha castrado.
Não, não estou dizendo que Bolsonaro “acertou”: ao aparelhar a Petrobrás e outras estatais, intervir de maneira equina e cavar uma crise que se revelará onerosíssima (para o nosso bolso) e incontornável, suas atitudes cavalgaram, relinchando, para o outro extremo, e são as piores possíveis. A ironia é que, no começo da década passada, a sra. Dilma Rousseff cometeu exatamente os mesmos erros. Deu no que deu, embora eu não seja tão otimista em relação ao destino de Bolsonaro, dado o apoio dos coturnos (sobretudo policialescos) que ele arregimentou. Em 2023, sentiremos saudades de 2021.
Voltando àquilo que eu falava sobre o nosso iliberalismo, aproveito para pontuar que o professor João Cezar de Castro Rocha tem falado a esse respeito por aí. Ele é autor do melhor estudo sobre os tempos sifilíticos que vivemos: Guerra Cultural e Retórica do Ódio, lançado há pouco pela Caminhos (falarei a respeito no futuro). Junto com A Tirania dos Especialistas (ed. Civilização Brasileira), de Martim Vasques da Cunha, é uma leitura imprescindível para mensurar a cova em que nos enfiamos. Ou, melhor dizendo, covas: mais de 250 mil brasileiros já morreram por culpa da incompetência e da desumanidade de Bolsonaro no (anti)tratamento da Covid-19. Não há vacina que nos salve do iliberalismo e da voracidade genocida.