Texto publicado hoje n’O Popular.
Em tempos de crise, tudo parece se distanciar. Todo diálogo se torna um diálogo de surdos, pois, como diz a certa altura o mais cínico dos personagens do romance Nix, de Nathan Hill, a “realidade é complicada demais, assustadora demais” e nunca “fomos tão radicais em política, tão fundamentalistas em religião, tão rígidos em nosso pensamento, tão incapazes de empatia”. Tendo isso em mente, é possível ler essa bela estreia do autor (lançada no Brasil pela Intrínseca, com tradução de José Francisco Botelho) como uma tentativa de lançar alguma luz sobre o nosso tempo e, por meio de uma intrincada história familiar, espelhar o desassossego que vivenciamos.
Ao longo de quase setecentas páginas, e girando em torno de um determinado “presente” (meados de 2011), a narrativa se dispersa no tempo de uma forma tal que nos lembra o que Don DeLillo perpetrou em Submundo. É verdade que Hill não alcança a profundidade reflexiva e o humor sombrio de DeLillo: em seus piores momentos, felizmente poucos, assume um tom meio canhestro de autoajuda. Mas, nous melhores, investe com arrojo e inventividade naquele drama familiar que é às vezes preenchido, às vezes adoecido pelo drama histórico. Em primeiro plano, e não obstante a tempestade que raiva lá fora, estão sempre as escolhas dos personagens.
Os protagonistas de Nix são Samuel e sua mãe, Faye. Ele é um escritor frustrado que ganha a vida como professor universitário e sente a vida escorrer pelos dedos. Após se desentender com uma aluna, está prestes a perder o emprego. Faye, por sua vez, abandonou marido e filho décadas antes e desapareceu. Por razões que só serão esclarecidas no desfecho, ela se envolve em uma confusão com um político boçal. O escândalo reaproxima mãe e filho: sob um falso pretexto, Samuel quer desvelar os segredos da família; já Faye busca expiá-los.
Conforme foi dito acima, as trajetórias dos personagens tangenciam e às vezes mergulham em eventos históricos: os protestos de 1968 em Chicago, a Guerra do Iraque, o Occupy Wall Street e até mesmo a invasão de uma cidadezinha norueguesa pelos nazistas. Cada uma dessas passagens é costurada habilmente pelo autor, explorando sobretudo as constantes fugas de Faye e as hesitações de Samuel, e em pelo menos duas delas (1968 e Iraque) Hill se impõe como uma voz de primeira linha.
Ele é capaz de alternar humor – Hubert H. Humphrey em toda a sua paspalhice; Allen Ginsberg “lecionando”; o capítulo 3 da oitava parte e sua levada insana à David Foster Wallace – e terror – os abusos sofridos por um personagem; a repressão policial em 1968; a imagem de um camelo enlouquecido em meio à guerra – sem maiores tropeços, e o livro flui muito bem do começo ao fim. Tal fluidez é incrementada por soluções imaginativas, como uma discussão entre professor e aluna estruturada a partir de falácias lógicas ou o longo embate em Chicago estilhaçado por uma sucessão de blocos narrativos, cada qual contando ou mesmo alucinando um fragmento do confronto.
E é nesse espírito que Hill lança mão de uma velha história de fantasmas (que explica o título do romance) para nos remeter ao nosso maior temor em tempos conturbados: de que cavalgamos rumo ao precipício, levados justamente por aquilo que mais amamos. Mas, sob o “violento coração do mundo”, Nix aponta para a possibilidade de outros caminhos.