Texto publicado hoje n’O Popular.
Mais inteligente do que ver a guerra, ou as versões sensacionalistas e espetacularizadas que nos chegam dela, é pensá-la e pensar a nossa relação com as imagens dos conflitos que assolam o mundo, imagens que, não é de hoje, circulam (ou, para usar um termo atual, viralizam) por aí. É o que propõe Jean-Luc Godard em filmes como Para sempre Mozart.
O longa se organiza em torno de dois momentos: alguns jovens tentam chegar a Sarajevo, em meio à guerra que solapou a até então Iugoslávia, a fim de encenar uma peça de Musset; um velho cineasta é tolhido pela estupidez dos produtores, pela incompetência dos atores e pela incompreensão do público, que, noutro momento, não perdoa nem mesmo Mozart (que teria “notas demais”).
Assim, e não por acaso, Godard desenvolve o mínimo possível de notas, e nem sempre até o final. O filme me parece a narrativa (se tanto) de uma sequência de abortos narrativos. Por exemplo: a esperança abortada dos jovens, típica de seu idealismo; essa esperança sorri obscuramente, exibe os dentes da própria morte. Pois é óbvio que eles não chegarão a Sarajevo. A morte é desespetacularizada, assim como a guerra. Logo, a única peça que os personagens encenam é a de seu próprio fim.
Godard já lidara com o campo de batalha em Tempo de Guerra (Les carabiniers, 1963), um filme de guerra cuja estrutura parodia e nega a dos filmes de guerra. Não que haja ali um desmonte do gênero; antes, o cineasta dá um passo atrás em relação a ele. Com isso, ele sublinha a precariedade do discurso sobre a violência, tornado prosaico (porque é mesmo desgraçadamente prosaico) até pelo que os dois protagonistas, fazendeiros-combatentes, escrevem às esposas distantes, como: “Passamos por um rio de sangue. Um grande beijo”.
Para sempre Mozart, realizado mais de três décadas depois, trabalha em um outro registro, voltado inclusive para a própria feitura do filme. O desconsolo para com o business cinematográfico é explícito na segunda metade. O filme dentro do filme, sim, parece ter notas demais. O produtor quer sempre mais. Olha para o mar e reclama, diz que é pouco. O investidor é dono de um cassino. Note-se, também, como a atriz só consegue dizer um sim quando foge da câmera do filme dentro do filme e encara a outra, de Godard. Ela só se faz presente na medida em que se retira da camada narrativa mais interna (e falsa) para se colocar na outra, antiespetaculosa.
E o cinema de Godard parece há muito movimentar-se pela via da ausência. Ele está fora do circuito, fora das formas narrativas tradicionais, fora do que o grosso do público espera que um filme seja. Para sempre Mozart olha noutra direção, e evita ser. As melhores passagens dizem respeito à viagem abortada dos jovens. Eles são feitos prisioneiros. São barbarizados. Cavam as próprias covas. O quadro não tenta contê-los, por um lado (vide a morte de Camille), e, por outro, sequer tenta enquadrar a violência. Tal distanciamento é típico da estética antinaturalista do diretor.
O envolvimento emocional com a violência soa obsceno para Godard, até porque aquele rio de sangue nunca parou de correr. A diferença é que, hoje, salvo raras exceções, não escrevemos mais cartas. Não, nem mesmo isso.