Resenha publicada ontem no Estadão.
Judith Butler celebrizou-se no Brasil pelo que ocorreu em 2017, e não me refiro ao lançamento de Caminhos Divergentes – Judaicidade e Crítica do Sionismo. Em novembro, quando veio a São Paulo para o colóquio “Os Fins da Democracia”, uma horda assomou à porta do SESC Pompeia e ateou fogo a uma boneca da filósofa, que ainda foi achacada no aeroporto antes de embarcar para os EUA. A grita se deu não pelo evento – embora seguramente sirva para ilustrar as discussões sustentadas ali, sobretudo se lermos “fins” como “términos” –, mas porque Butler, doutora por Yale e professora de literatura comparada em Berkeley, é autora do famigerado Problemas de Gênero. Mas, no exterior, a controvérsia diz respeito menos aos estudos de gênero e mais ao que ela tem a falar sobre a possibilidade de uma crítica ao Estado de Israel que, mesmo antissionista, não possa ser tida como antissemita. Dentre outras coisas, é disso que trata Caminhos Divergentes.
Com esse livro, a autora conseguiu a proeza de irritar direita e esquerda. Uns acusaram-na de antissemitismo e de cumplicidade ideológica com organizações terroristas como o Hamas; outros, de que o trabalho é academicista, descolado da realidade e do sofrimento palestino. Antes de abordar a obra, é bom ressaltar que tais ataques não se sustentam: por um lado, ela não usa termos como “Palestina ocupada” e jamais equivale Israel à Alemanha nazista; por outro, e aqui entramos no escopo de sua reflexão, ela se propõe a refletir “sobre a necessidade de demorar-se no impossível”, ou seja, afirmar “que uma crítica judaica da violência de Estado israelense é (…) possível” e “eticamente obrigatória”.
Indo além, Butler se esforça para demonstrar que a coabitação é algo intrínseco à própria judaicidade (e o uso do termo em detrimento de “judaísmo” não é um acaso), entendida como “um projeto anti-identitário”, pois “ser judeu supõe assumir uma relação ética com o não judeu”. Isto decorreria da “condição diaspórica” da própria judaicidade: “a vida em condições de igualdade em um mundo socialmente plural é um ideal ético e político”.
Recorrendo aos palestinos Edward Said e Mahmoud Darwish e a leituras nem sempre ortodoxas de Lévinas, Walter Benjamin e Hannah Arendt, ela foge à apropriação ideológica dos termos da discussão pelo Estado de Israel. Noutras palavras, Butler critica o controle da judaicidade pelo sionismo e advoga a necessidade de se extrapolar o quadro referencial majoritariamente judaico para lidar com a questão. Sendo o judaico definido e delimitado pelo não-judaico (vide as ideias de Said relativas a uma “origem mais diaspórica” do judaísmo e de Arendt quanto à manutenção de tal identidade), torna-se essencial incluir a alteridade no cerne da reflexão. O deslocamento estaria no DNA de palestinos e judeus, constituindo a “base de uma aliança possível” que levasse à coabitação e a um “binacionalismo uniestatal”.
Caminhos Divergentes traça uma cartografia instigante, repleta de desvios pelos quais podemos enveredar. Concordando ou não com Butler, usando ou não suas chaves interpretativas, aceitar que determinados posicionamentos (sobretudo aqueles típicos do sionismo mais extremo) devem ser questionados é imprescindível para uma fundamentação mais consequente da discussão. Sem isso, a coabitação é impossibilitada e Israel seguirá envolvido numa guerra permanente contra os vizinhos e si mesmo.