Texto publicado n’O Popular em 28.11.2017.
Os Brutos Também Amam ou, melhor dizendo, Shane é um clássico do cinema dirigido por George Stevens e lançado em 1953. Para quem não viu e para os que quiserem rever, há uma excelente cópia disponível em blu-ray no mercado brasileiro, a qual faz justiça à fotografia original, com seus planos médios e gerais estonteantes e um belo uso do Technicolor. No filme, entre outras coisas, Stevens aborda a fixação de um país, de suas fronteiras e leis, o ocaso de uma determinada maneira de fazer as coisas e os ruídos — que não raro resultam em violência — entre as novas e as velhas formas de se situar nesse organismo social em transformação.
A exemplo de qualquer outra nação, os EUA também se forjaram mediante uma série de carnificinas (envolvendo nativos, ingleses, mexicanos, cidadãos insurgentes etc.). O momento histórico enfocado em Shane é de transição: segunda metade do século XIX, não muito depois de uma daquelas carnificinas (a Guerra Civil) que deram forma ao país que hoje conhecemos. A lei já começa a se impor ou, ao menos, fala-se bastante dela. A lei, não a justiça. Uma coisa talvez leve à outra, eventualmente. Ou não. O que importa é que há um Estado em algum lugar e a era dos pistoleiros está chegando ao fim.
Shane (Alan Ladd), o personagem-título, é uma espécie de relíquia da selvageria pregressa, e sabe muito bem disso. Os tempos são outros, e a violência aos poucos adquire novas formas, novos expedientes. Ele procura se adaptar. Arranja trabalho em uma fazenda, afeiçoa-se pelo empregador e sua família. A paixão nunca consumada, mas explícita, entre Shane e a mulher (Jean Arthur) é primorosamente explorada e lembra o amor de John Wayne pela cunhada (e vice-versa) em Rastros de Ódio (The Searchers, 1956), obra-prima de ecos homéricos assinada por John Ford.
O foco de Shane, no entanto, reside na luta de um grupo de colonos contra um criador de gado, Ryker (John Dierkes), que quer lhes tomar as terras. Os colonos estão assentando um país, e assentar um país significa delimitar propriedades, erguer cercas, estabelecer fronteiras, conquistar a terra e fixar-se nela por meio do trabalho, com vistas a criar e manter uma comunidade. Não há mais lugar para open range.
Por piores que sejam os seus métodos — ou exatamente por isso —, Ryker é, de certa forma, também uma relíquia de outros tempos, um “romântico”, alguém que talvez não compreenda direito as mudanças em curso, que considera justo ou aceitável tomar para si o que quiser, mesmo que isso signifique pressionar, achacar, desalojar ou assassinar outrem. Tanto que, como último recurso para atingir seus objetivos, contrata um pistoleiro à moda antiga, Wilson (Jack Palance).
A essa altura, o conflito e suas regras estão bem estabelecidos, claros, e são uma espécie de reverberação tardia, mas ainda brutal e imprevisível, daquele modus operandi moribundo: para se defender e proteger seus novos amigos, Shane precisará agir, entregando-se à boa e aprazível matança. A conversa final, antes do tiroteio, é tão reveladora (entre Shane e Ryker) quanto fantasmagórica (entre Shane e Wilson). Ryker sabe que seu tempo já passou, mas o que pode fazer? “Largar as armas e plantar batatas?” Aquelas vozes ecoam outro lugar, outra época. Não é por acaso que, ao ir embora, cumprida a sua missão, Shane cavalga sobre um cemitério.