::: Cavaleiro de Copas investe em uma fluidez que acentua exatamente a fragmentação e o esgarçamento de seus personagens. Terrence Malick radicaliza procedimentos fílmicos semeados em Árvore da Vida e regados em Amor Pleno. Elementos deste e daquele comparecem no longa de 2015, mas, no lugar da possibilidade da aceitação dolorosa dos silêncios de D’us (em Árvore) e do outro (em Amor), Malick dá um passo atrás e atenta para os ruídos de uma vida desarvorada — daí a radicalização estrutural.
::: Visto em conjunto com os dois longas precedentes, Cavaleiro de Copas oferece uma descida ainda mais intranquila pelos círculos terrenos do sofrimento. Há o luto em Árvore da Vida e o estilhaçamento afetivo em Amor Pleno, coisas que se fazem presentes em Cavaleiro (há um irmão morto e a relação tempestuosa do protagonista com os familiares que restaram; há o casamento desfeito e um affair problemático com uma mulher casada), mas inscritas em um contexto que me parece ainda mais turbulento (em que pese a morte do filho em Árvore, há ali um núcleo familiar que, mal ou bem, ajudar a conter o esgarçamento total). As diferentes dores são presentificadas quase que simultaneamente pela estrutura que se desprende de um ordenamento cronológico, o que também ocorre nos outros filmes, mas de forma menos incisiva.
::: Não há espaço para o silêncio, qualquer que seja, na vida do personagem interpretado por Christian Bale. Roteirista bem situado na indústria, divorciado e entregue a uma rotina hedonista que remete aos filmes de Abel Ferrara (penso no Matthew Modine de Blackout, mas há outros), ele erra por uma Los Angeles sem esquinas, em linha reta, anulando quaisquer chances de instaurar aquele chão comum que vislumbramos, mesmo que precária e momentaneamente, em Amor Pleno.
::: Não é que Malick tenha abraçado o niilismo, pelo contrário. A câmera de Emmanuel Lubezki segue dispondo o mundo de tal forma que cada plano é um convite ao maravilhamento. É como se o filme dissesse, travelling após travelling: a beleza está aqui, ao redor, em toda parte. Basta tocar. Basta ver. E tampouco há maneirismos em tal procedimento. A fotografia e a decupagem dão unidade ao que, de imediato, (a)parece fragmentado, em processo de desmonte, rachado. O filme é entrecortado e soluçante na medida em que seu protagonista assim se vê e se coloca no mundo. A forma exprime à perfeição o conteúdo anímico tortuoso de alguém que se distanciou de si e do outro, recortando-o da Criação, cuja beleza imperturbável está sempre ali, (pré-)disposta.
::: Há momentos em que uma reunião é ensaiada: a visão do mar (símbolo da unidade maior, materializada pelo próprio filme como um/em seu todo), um mergulho eventual, o passeio pelo deserto, o céu entrevisto aqui e ali, sempre e genialmente contraposto, via cortes secos, aos tetos baixos dos bares, cassinos, boates, puteiros, apartamentos e quartos de hotel.
::: Cavaleiro de Copas circula pelos ambientes de tetos baixos, atenta para o sofrimento imediato, para a dor humana em suas mais diversas formas, mas, mesmo em sua extrema faticidade, direciona o nosso olhar para o arvoramento e encaminha uma resposta teleológica possível que, não obstante a nossa miséria, é perfeitamente alcançável, ética e esteticamente, aqui e agora.