Contra o silêncio

Resenha publicada n’O Estado de São Paulo
em 11.02.2017.

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Três momentos extremamente delicados da vida do compositor russo Dmitri Shostakovich (1906-1975), nos quais ele manca “cautelosamente de uma ansiedade para outra”, servem como espinha dorsal para o estupendo O ruído do tempo, romance do premiado autor britânico Julian Barnes. Aqui e ali, o leitor se depara com o protagonista à mercê do moedor de carne humana que era o Estado Soviético, obrigado a silenciar ou a falar em prejuízo de outros, colocando-os em situação semelhante ou pior, ou – o que pode ser o mais terrível – a simplesmente compactuar.

O primeiro dos tais momentos se dá em plena década de 1930, quando Stálin tratava de perseguir, prender, torturar e assassinar todos aqueles que julgava “subversivos” – palavra tão genérica que, no contexto de uma máquina totalitária, consegue abarcar qualquer um que desagrade ao ditador ou seja por ele antagonizado. O “crime” de Shostakovich foi compor Lady Macbeth de Mtsensk, ópera baseada na novela de Nicolai Leskov e que obteve enorme sucesso, pelo menos até que Stálin foi assisti-la e não gostou. É a senha para que a imprensa oficial (única que havia) crucifique o compositor, atacando sua obra como “apolítica e confusa”, capaz de despertar “o gosto pervertido dos burgueses com uma música inquieta e neurótica”.

Chamado a prestar contas às autoridades, logo percebe que a farsa é ainda maior: menos que ele, estão empenhados em trucidar seu protetor, o marechal Tukhachevski, a quem deve implicar num suposto (e falso) complô para assassinar Stálin. No entanto, antes que Shostakovich possa ser levado a “colaborar”, o moedor de carne humana se ocupa da pessoa que o interroga, vitimado por uma intriga similar. A ironia da situação é desesperadora.

No segundo momento, a pedido do próprio Stálin, ele viaja a Nova York com uma comitiva a fim de comparecer a um certo Congresso Cultural e Científico para a Paz Mundial. O tempo dos expurgos já passou, bem como a Segunda Guerra Mundial, mas o clima ainda é sufocante. “A paz tinha voltado, e portanto o mundo estava outra vez de cabeça para baixo”, escreve Barnes. Um exemplo: no momento em que Stálin o intima a viajar como “representante cultural” e na condição de maior compositor russo, sua música estava de novo proibida na União Soviética.

Por fim, na terceira e última parte do romance, já sob o governo de Nikita Khrushchev, as coisas mudam um pouco, mas não se tornam menos perigosas: “Antes, havia morte; agora, havia vida. Antes, os homens borravam as calças; agora, podiam discordar. Antes, havia ordens; agora, havia sugestões. Então as Conversas com o Poder se tornaram, sem que ele se desse conta, mais perigosas para a alma. Antes, tinham testado a extensão da sua coragem; agora, testavam a extensão da covardia”. Assim, o mais impressionante é que a humilhação final não venha por meio de avisos, censuras, interrogatórios ou ameaças, mas com uma nomeação: engolido e mastigado pela engrenagem, Shostakovich se vê obrigado a aceitar o cargo de Presidente da União de Compositores da Federação Russa, o que implica sua filiação ao Partido, coisa de que sempre se escusou.

“E agora, finalmente, depois que o grande terror havia passado, vieram em busca de sua alma”: com mais essa ironia dolorosíssima, a capitulação derradeira, o “suicídio moral” que faz com que Shostakovich prescinda do suicídio físico, Barnes coroa uma obra magistral sobre a devastação anímica causada desde sempre, e até hoje, pela opressão político-ideológica. Visto dessa forma, e tendo em perspectiva os dias atuais, O ruído do tempo ganha ainda mais corpo e relevância. O divórcio entre a arte e a verdade são o sintoma da doença não só do artista, mas também do povo que ele integra, e há que se tomar cuidado para que o ruído do título não seja o daquele moedor de carne humana, que persegue, oprime e silencia.