Gloucester

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Acho o filme dirigido por Richard Loncraine e lançado em 1995, com o estupendo Ian McKellen no papel-título, a melhor adaptação de Ricardo III, de Shakespeare. A peça fecha a primeira tetralogia histórica, que aborda a Guerra das Rosas (1455-1485), e é antecedida pelas três partes de Henrique VI. Depois, como se sabe, Shakespeare escreveu uma segunda tetralogia, que cobre eventos anteriores e é constituída por Ricardo II, as duas partes de Henrique IVHenrique V. Voltando ao filme, além da atuação soberba de McKellen, adoro o modo como Loncraine brinca com a iconografia nazi-fascista (a peça é ressituada no começo do século XX), ao mesmo tempo em que assume uma levada gangsterista que casa à perfeição com o retrato — que hoje sabemos historicamente inacurado ou no mínimo controverso — de Ricardo III como um “cão maldito”, “marcado de nascença, / Escravo ignóbil, filho dos infernos; / Difamador do ventre em que pesaste, / Fruto odioso da ilharga de teu pai! / Trapo sem honra!” etc. e tal. Loncraine dirige o filme com arrojo, colando-o à desavergonhada perversidade do protagonista. O modo como “quebra” o discurso de abertura, colocando Ricardo frente à corte no começo solar e espirituoso (“Agora é o inverno de nosso descontentamento / Feito verão glorioso pelo Sol de York”) para, em seguida, quando a fala ensombrece, isolá-lo com o próprio reflexo “malfeito de feições” no espelho de um banheiro deserto (“Armei conspirações, graves perigos, / Profecias de bêbados, libelos, / Para pôr meu irmão Clarence e o rei / Dentro de ódio mortal, um contra o outro”), é um primor de construção cinematográfica, sem prejuízo algum para o texto original. Por mais distinta que seja a encenação, dada a alteração temporal, o texto respira por si e também graças a soluções como a citada, de tal forma que não há estranhamento nem mesmo quando Ricardo, sob fogo inimigo e dentro de um jipe, berra: “Um cavalo! Meu reino por um cavalo!”. Talvez conquistado pelo charme coxo do personagem, Loncraine ainda opta por fazê-lo se matar em vez de entregá-lo a Richmond, futuro Henrique VII, o qual atira em um corpo que, sorridente, deixa-se abraçar pelo fogo lá embaixo. Que homem.