Texto originalmente publicado no Blog do IMS.
Não é difícil imaginar o que levou David Cronenberg a adaptar o romance Cosmópolis (2003), de Don DeLillo. Talvez o cineasta canadense tenha se identificado com o tom hiperbólico da narrativa e com a sua recusa em investir numa levada realista para dar conta de um mundo ancorado quase que exclusivamente na virtualidade: o sistema financeiro global, que está ao mesmo tempo em todo lugar e em lugar algum. É um mundo no qual “os seres humanos e os computadores se fundem” e as pessoas deixam de morrer para ser “absorvidas em fluxos de informações”. Esse tipo de coisa deve ter soado como música para o diretor de eXistenZ (1999).
O filme ressignifica, à luz trevosa dos eventos de 2008 e da crise econômica que se seguiu, um livro que, ao ser lançado em 2003, foi tido por muitos como exagerado, absurdo e até mesmo identificado com alguma subespécie de “realismo fantástico”. É verdade que Cosmópolis está distante da excelência de Ruído Branco (1985) ou da monumentalidade de Submundo (1997), duas das obras mais festejadas do autor, mas merece ser lido ou relido, dentre outros motivos, porque parece ter mais a nos dizer hoje do que há treze anos. Como se sabe, a quebradeira de 2008 transformou o estouro da bolha ponto-com numa marolinha.
O protagonista, Eric Packer, é um bilionário de vinte e oito anos, especulador maiúsculo que cruza Nova York em uma limusine num dia em abril de 2000 para cortar o cabelo. Não é um dia qualquer: a cidade está em polvorosa com a visita do presidente, o funeral de um rapper, um protesto antiglobalização (ou coisa que o valha) e, acima de tudo, com um pânico financeiro galopante que, logo veremos, é causado pela teimosia (suicida?) de Packer em especular com a moeda japonesa. Em seu trajeto, e muitas vezes sem deixar a limusine, ele faz uma consulta médica rotineira (ou nem tanto), encontra-se com a esposa, com assessores, é informado de uma possível ameaça à sua vida e, aos poucos, ausenta-se da histeria circundante ao mesmo tempo em que a incrementa. Ele vê o mundo em que vive e sabe que não escapará dele. Logo, só poderia mesmo tentar destruí-lo.
Nesse percurso, DeLillo busca resgatar o que uma personagem chama de “qualidade narrativa do dinheiro”, perdida numa época em que “a riqueza virou seu próprio objeto”. O dinheiro não tem mais história, vem de lugar algum e vai para lugar algum. Sua “qualidade narrativa” desapareceu em função da inexorável imaterialidade do sistema financeiro, que domina tudo e em relação ao qual não há “lado de fora”. Como deixar de “especular no vazio” e recuperar aquela materialidade?
A princípio, mesmo o prazer sexual está alicerçado em um “pacto de intocabilidade”: Packer e sua gerente financeira gozam sem se tocar, enquanto ele passa por um animado exame de toque retal. Elementos corpóreos como suor, esperma e sangue começam a aparecer com insistência no decorrer do livro, e os contatos físicos vão aumentando até culminar na “extensão lógica dos negócios”, isto é, no assassinato. A violência está presente desde o começo, mas não a humanidade que lhe é ou deveria ser inerente. A humanidade é, digamos, reengendrada por meio da expressão mais primitiva ou propriamente física da violência. Óbvio que DeLillo não elabora um elogio da violência, qualquer que seja, mas ela é intrínseca ao personagem, desde a sua forma mais impessoal e “civilizada”, no distanciamento dele em relação ao mundo e às outras pessoas, até os embates físicos, de natureza sexual ou não, aos quais ele passa a se entregar. Despersonalizado, Packer só recupera algo de si a partir do momento em que é confrontado por alguém disposto a matá-lo: “(…) Mas era a ameaça da morte ao cair da noite que lhe falava de modo mais decisivo sobre algum princípio do destino que ele sempre soubera que um dia haveria de se esclarecer”. É só a partir disso que ele pode “dar início à atividade de viver”.
A recuperação da “qualidade narrativa do dinheiro” está, portanto, ligada à possibilidade de resgatar o corpo e suas demandas: comer, transar, sangrar, morrer. É a vida nutritiva de que nos fala Aristóteles no De Anima ao distinguir os seres animados dos inanimados. Packer é (re)animado à medida em que come, transa, sangra, ou seja, quando volta a se perceber lançado para a morte. Roubando o título de um romance posterior de DeLillo, ele se redescobre vivo justamente ao tomar consciência, reassumir e acentuar sua posição de homem em queda.
No fim das contas, Cosmópolis é um romance narrado não do ponto de vista do especulador, daqueles que o cercam ou de quem deseja ir à forra contra ele, mas pelo próprio dinheiro que Packer, em seu ímpeto autodestrutivo (e por isso mesmo criador, posto que a “vontade de destruir é um impulso criativo”), trata de espalhar de “modo metódico pelas fumaças dos mercados destroçados”. O homem é visto pela entidade que, virtualizada ao extremo, trata de pulverizar enquanto passeia pela cidade. Packer desumanizou o dinheiro. O dinheiro, então, numa reação de força igual e em sentido contrário, re-humaniza Packer. Temos, em suma, uma história contada do ponto de vista do inanimado. O que pode ser mais contemporâneo do que isso?