Parafraseando um trechinho de Uma Vida Pequena, de Hanya Yanagihara, às vezes acordo tão distante de mim que levo um tempo para me lembrar do que sou. Há uma escuridade na vida, ou em certas passagens dela, que encerra um passado de dor, e o esforço de distanciamento é tão inevitável ou instintivo quanto, no fim das contas, inútil. O longo romance de Yanagihara está entre as coisas mais dolorosas que já li, e a sua verdade reside não na crueza com que aborda a violência sofrida por um dos personagens, uma violência primeiro infligida (por anos a fio, na infância, na adolescência, e depois, por um breve mas chocante período, na maturidade) e depois autoinfligida (porque alguém que sofre o que ele sofreu custa a crer que mereça algo além do que ser continuamente brutalizado; é o que há, e a pessoa sempre espera que eles voltem, não importa como ou onde, e quaisquer alívios só podem ser falsos ou momentâneos), mas na teia compreensiva que lança sobre esse e outros personagens, no modo como se debruça sobre cada mínimo aspecto de suas vidas pequenas, tão pequenas quanto a minha ou a sua, e deixa reluzir, a despeito de toda a brutalidade que alguns sofremos, o poder e a beleza de coisas como a amizade, a real capacidade de sacrificar-se pelo outro, a compreensão das limitações de cada um e a necessidade, não raro insuportável, de se deixar ir embora e/ou permitir que o outro vá. Uma Vida Pequena sempre estará comigo, e não só porque é um belíssimo romance, mas sobretudo pela proeza de verbalizar coisas que eu julgava impossíveis e me lembrar, com o cuidado dos melhores amigos, do que eu sou. Isto não é nada pequeno, acreditem.