É comum se referir a Vício Inerente como o “mais fácil” dos livros de Thomas Pynchon (1937), autor de calhamaços como O Arco-Íris da Gravidade e Mason & Dixon. De fato, o sétimo romance do autor (que lançou o oitavo, Bleeding Edge, em 2013) exige menos do que os citados acima, e forma uma espécie de “ciclo californiano” com O Leilão do Lote 49 (1966) e Vineland (1990). Qualquer um destes três livros é uma excelente opção para os que desconhecem o trabalho do autor e não estejam dispostos a mergulhar, por exemplo, nas (estupendas) mil páginas de Contra o Dia. Suas “facilidades”, contudo, são ilusórias.
Por mais engraçado e tresloucado que seja Vício Inerente, com sua narrativa setentista, repleta de tramas e subtramas, reviravoltas, personagens e mais personagens, todos girando ao redor e muitas vezes à revelia do protagonista, o lisérgico detetive particular Doc Sportello, é bom que não nos desliguemos do que o autor diz acerca dos estertores da era Hippie e sugere sobre os rumos dos EUA desde então.
Situados na ressaca dos anos sessenta, Vineland e Vício Inerente me parecem próximos. É certo que boa parte do primeiro se passa no começo dos anos oitenta (mas com vários flashbacks das décadas anteriores), mas Reagan não seria algo como uma tremenda enxaqueca decorrente da tal ressaca? E talvez seja possível afirmar que O Leilão do Lote 49 (se) liga àqueles dois ao refletir (sobre) as falhas comunicacionais que têm lugar entre as pessoas, falhas que cimentam a nossa alienação dos outros e da própria realidade.
Lançado originalmente em 2009, Vício Inerente é o mais distanciado no tempo em relação àquele período histórico. Gosto de pensar nele como um romance sobre a impossibilidade da praia. Esta asserção tem a ver com a epígrafe do livro, algo que os manifestantes parisienses grafitaram em maio de 1968: “Sob as pedras da calçada, a praia!”. Como se sabe, eles arrancavam os paralelepípedos do chão para atirá-los nos policiais; havia areia embaixo deles. Figurativamente, é uma alusão a uma vida fora da sociedade repressora, para além (ou aquém) do maquinário fascista ou protofascista, a “praia” como metáfora dessa vida ideal ou idealizada.
Óbvio que a “praia” nunca foi alcançada, mas, talvez, não se tratasse de alcançá-la, mas apenas de se referir a ela. Logo, uma vez que é inalcançável, talvez seja lícito pensar nela como um “vício inerente” (isto é, um “defeito” intrínseco) daquele sonho. Tais e tais coisas são sugeridas no decorrer do romance, e também a ideia de que a narrativa, em si, talvez seja um dos poucos abrigos que nos restam em meio à crescente chuva de excremento.
Por outro lado, é um procedimento usual na ficção de Pynchon apropriar-se da História, tirá-la das mãos dos “governos” e trazê-la para o domínio dos “fabuladores”, como é dito a certa altura de Mason & Dixon. Não creio, portanto, que ele estivesse preocupado em sentar-se à mesa e mensurar as perdas e ganhos de uma determinada geração. Afinal, estamos diante de um autor cujo trabalho ancora-se numa investida entrópica face à realidade.
Pynchon vê como tudo se esboroa, contínua e imperturbavelmente. Discussões ideológicas ou posicionamentos dessa natureza servem para pontuar e contextualizar o que é narrado, e não muito mais. A política (mas não a Política, bem entendido) faz parte da paisagem; é o estrume da História, esta que nos cavalga enquanto desaparecemos.
A neblina que envolve Sportello e o leitor ao final de Vício Inerente tem muito a ver com essa sensação de esboroamento e remete à escuridão ambiente que parece recair sobre tudo, mais e mais densa. Transformados em sombras, circulamos por aí, tontos, uns atrás dos outros. O belo parágrafo final é uma prece para que sigamos na caravana, apesar de tudo, ou, pelo menos, ainda seja possível se referir a ela e aos que nela estão, mediante o ato de narrar ou mesmo uma simples conversa, quando reconhecemos o outro e, débeis, tentamos nos dirigir a ele.