Um trecho do meu romance
Terra de casas vazias
(Rocco, 2013).
Aureliano contornou um Monza preto que alguém estacionara sobre a calçada e já se preparava para bater palmas quando notou a figura sentada no meio-fio, alguns metros abaixo. Soube de imediato. Aproximou-se da garota. Ela mexia os dedos dos pés descalços e tinha os olhos inchados de tanto chorar. Pequena também. Isopor junto ao fogo. Ele não precisou dizer nada. Sentou-se ao lado dela e fitou a rua vazia. Estavam todos do outro lado do quarteirão, o mais próximo possível do matagal, do corpo. Pescoços esticados. Curiosos. Querendo ver. Aureliano ficou ali junto dela e não disse nada por um bom tempo. Ela chorava um pouco, parava, xingava, tremia, chorava mais um pouco. O rosto era redondo e as lágrimas escorriam por toda a extensão das bochechas, dois filetes se encontrando no queixo para formar uma única e grossa gota que então caía direto no asfalto, passando por entre seus joelhos magros. Um suicida caindo por um abismo estreito. Aureliano não conseguia desviar os olhos do queixo dela. O queixo gotejava. Foi ela quem falou primeiro:
— Você viu os joelhos dela? Prestou atenção neles, nos joelhos dela?
Ele balançou a cabeça, tinha prestado atenção, claro que tinha.
— Não foi a primeira vez — ela continuou, a voz aparecendo e sumindo como se algo fosse ligado e desligado na garganta dela. Aureliano pensou em Asmodeu morrendo. Na voz dele. Caixa de som com mau contato. — Os joelhos dela, eles. Contam tudo. Aqueles arranhões e marcas. Como se ela tivesse sido, sei lá. Queimada. Eu vi. As marcas, perguntei. Mas ela. Ela não disse. Nada. Tinha alguém machucando, mas ela. Ela. Nada.
Calou-se. O choro voltando com força. Soluços muito altos, tremendo inteira. Desmontando a olhos vistos. Implosão.
Camila naquela cama de hospital, desmontada a olhos vistos.
Quis estar lá com ela, sentado junto à cama, dizendo qualquer coisa que lhe ocorresse. Oferecendo-se para pegar um copo d’água. Os olhos fechados de Camila. Guardando os olhos fechados de Camila. Guardando os seus próprios olhos no bolso da camisa, depois de arrancá-los. Estaria em silêncio junto à cama, quieto e inútil, mas próximo dela, o melhor que poderia fazer, a única coisa que poderia fazer naquele momento.
Morrer não devia ser tão complicado.
Tão demorado.
Olhou para a garota.
Ela se dobrava de dor, quase tocando o asfalto com a testa, ia e voltava, chorando.
É sempre complicado, de um jeito ou de outro.
Também não lhe ocorria nada para dizer à garota. Melhor assim. O que poderia dizer? A melhor amiga violentada e estrangulada e depois desovada na porra de um matagal. Os joelhos dela. Foi a primeira coisa que viu, não? As queimaduras ali, do atrito com o tapete. Alguém forçando o corpo dela, empurrando e arremetendo com toda a força. Por que você está fazendo isso comigo? Dor nas extremidades, dor em seu meio. Que foi que eu te fiz? Dor em toda parte. O corpo inteiro, uma enorme bola de dor. Por favor, para. Queimando. Não havia nada que pudesse dizer, evidente que não.
Olhou para os lados.
A rua vazia. O sonho de um deserto, o meio do nada. Estavam sozinhos ali e não havia mais nada. Uma certa paz a despeito de todo o maldito sofrimento. Da gratuidade da coisa toda.
Das queimaduras.
Ele esperou.
Esperou o choro arrefecer, a respiração ficar menos entrecortada. E então falou pela primeira vez desde que se sentara ali, junto dela:
— Qual é o seu nome?
Ela disse algo ininteligível.
— Desculpa, eu não entendi.
Ela limpou a garganta, tossiu um pouco, e só então conseguiu repetir:
— Maria.
— Maria — ele repetiu e ela balançou a cabeça. — Você tem o mesmo nome que a sua amiga.
— Tenho — ainda balançando a cabeça, a voz ameaçando embargar outra vez. — Tenho. Tinha.
Tentou limpar os olhos com as costas das mãos. As lágrimas, contudo, não paravam. Porra, ele pensou. Quantos anos você tem? Eu te ofereceria um cigarro, se pudesse. Se tivesse. Se pudesse.
— Vocês eram como irmãs — disse. — Amigas a vida inteira. Desde pequenas. Desde sempre.
Ela não conseguiu mais falar. Enorme bola de dor. Balançou a cabeça. Sim. Mais lágrimas. Sim. As melhores amigas. Elas eram como irmãs. Ela deve ter dito alguma coisa. Qualquer coisa.
— Você precisa me contar, Maria. Precisa me contar quem você acha que fez isso.
…………
Imagem: “Casas nº 1”, xilogravura de Wylma Martins.