Texto publicado em 09.10.2025 no Estadão.
László Krasznahorkai é um caso raro: um escritor agraciado com o Nobel de Literatura que não se confunde com a mediocridade circundante ou com os modismos carentes de imaginação. Para ficar neste século em que o obscurantismo voltou a arrebentar janelas e cabeças, podemos citar V. S. Naipaul, J. M. Coetzee, Elfriede Jelinek e Olga Tokarczuk como exceções nesse sentido. Em geral, a Academia Sueca procura por nomes que não causam desconforto em salas de estar e convescotes literários. É por isso que, em vez de António Lobo Antunes e William T. Vollmann, premiaram José Saramago e Jon Fosse. Em geral, eles buscam o middlebrow travestido de highbrow. Mas, de vez em quando, como o relógio quebrado que acerta as horas duas vezes por dia, lançam inadvertidamente os olhos para o alto.
E, antes de nos ocuparmos do autor premiado, é preciso olhar um pouco para a Hungria. Eis a nação que, em um século, deu ao mundo Miklós Szentkuthy e Peter Nádas. O primeiro, responsável por Prae e pelos dez volumes do Breviário de São Orfeu, este uma compressão de dois milênios de história europeia mediante uma abordagem inovadoramente híbrida, em que ensaio, ficção e digressões variadas se misturam, obviamente morreu sem levar o Nobel (azar do Nobel). E Nádas, autor do monumental Histórias paralelas, subverte o romance histórico-familiar e pega o século XX e suas patologias no contrapé; também não foi premiado, mas há tempo. No Brasil, a Todavia publicou a novela A Bíblia, de Nádas, que previsivelmente passou despercebida; Szentkuthy segue inédito em nosso português.
Krasznahorkai é um criador distinto dos supracitados. Se aqueles ainda são contaminados pela historicidade e, portanto, pela possibilidade de reter algo da cultura, o recém-nobelizado se movimenta por paisagens pós-apocalípticas e a resposta mais “leve” dentre as que oferece à implosão civilizacional é a sátira. Sim, há uma enorme carga distópica em seu trabalho, mas ele não recorre às ferramentas típicas desse gênero ou subgênero tão exercitado (e maltratado) pelos sentimentalistas e oportunistas de plantão. Um indício claro de sua insubordinação pode ser visto já na estrutura de suas sentenças e, por decorrência, de seus parágrafos: não há respiro, mas um crescente adensamento e uma radicalização dos procedimentos narrativos de que se vale, como se o autor dobrasse a aposta a cada página e a cada livro.
Em seus melhores romances, como Sátántangó (originalmente lançado em 1985 e o único publicado até o momento no Brasil, saiu pela Companhia das Letras em 2022 com tradução de Paulo Schiller) e A melancolia da resistência (1989), Krasznahorkai usa como cenários vilarejos que parecem se situar na borda do mundo. Em Sátántangó, uma comunidade rural é arrebatada pela visita de uma espécie de profeta ou salvador que, logo descobrimos, como todo profeta ou salvador, não passa de um vigarista que promete um futuro melhor alhures, mas quer apenas roubar os camponeses. O “tango de Satanás” do título é espelhado pelo arranjo narrativo: o autor dá seis “passos” adiante e seis “passos” para trás, indo e voltando no tempo e alternando diversas perspectivas. No fim, metaforicamente falando, o romance é como um labirinto que leva os personagens diretamente para o Minotauro: “no canto distante se aninhava uma escuridão de anos, e pelas frestas das venezianas fechadas raios de luz se desfaziam em nada”.
N’A melancolia da resistência, a força alegórica é ainda maior, e poucos livros representam com tamanho acerto tanto o colapso do bloco comunista quanto o caráter autofágico de toda revolução. De novo, estamos em um vilarejo miserável que sofre com ameaças internas e externas. Enquanto a realidade desmorona entre dois totalitarismos, um circo traz o cadáver da maior baleia do mundo e a única alma boa parece ser a de Valuska, o “idiota” local que logo será transformado em bode expiatório. E tudo começa com alguém bradando por “rearmamento moral”. Soa familiar?
Em livros posteriores, Krasznahorkai expandiu suas experimentações narrativas, chegando a organizar um romance (Seiobo járt odalent) a partir da sequência Fibonacci (em que cada elemento é a soma dos elementos que o precedem: 1, 2, 3, 5, 8…). Suas colaborações com o cineasta Béla Tarr, com quem transpôs para a tela obras em princípio inadaptáveis como Sátántangó, também são bastante conhecidas e reconhecidas. Essa inquietação constante e a ânsia para capturar as texturas de um mundo que foi (ou está indo) para o espaço, rumo ao “Paraíso triste” de Háború és háború (Guerra e Guerra), tornam Krasznahorkai o tipo de autor que, em vez de ser elevado, eleva o Nobel. É algo raro, mas acontece.