Cedi uma entrevista à jornalista Mafê Firpo da revista Veja sobre Meu passado nazista. Leia AQUI ou, abaixo, a versão integral, sem cortes.
Por que um narrador não confiável para essa história? Se inspirou nos dias de hoje em que a própria internet é um ambiente não confiável? O que podemos aprender com o personagem principal?
Em literatura, os bons narradores em primeira pessoa nunca são confiáveis. A ideia é inquietar o leitor no que diz respeito aos ruídos entre o que narra o personagem e o que pode ou poderia ter acontecido. Na literatura brasileira, o maior exemplo disso é “Dom Casmurro”. Conhecemos aquela história apenas pela voz do suposto traído. Até onde podemos confiar nele? Essa ambiguidade faz bem a qualquer obra literária, pois obriga o leitor a imaginar e interpretar. Nos dias de hoje, em que as pessoas leem pouco e leem mal, a literalidade arruína qualquer pacto imaginativo que possa existir entre autor e leitor. Então, ao escrever o livro, não pensei tanto no que acontece no ambiente virtual com relação à disseminação de mentiras etc. Eu me mantive alguns passos atrás, por assim dizer, ainda preocupado com questões literárias e “analógicas”. As questões políticas e prementes surgem de outras formas. Se podemos aprender algo com o protagonista de “Meu passado nazista”, não obstante todos os defeitos e o caráter dúbio que ele apresenta, é que a imaginação criadora pode nos ajudar a sobreviver. Não se trata de uma válvula de escape, mas de um esforço de distanciamento que me parece imprescindível para compreender e trabalhar certos traumas, pessoais ou coletivos. Ele se distancia, imagina e reimagina, e depois pode voltar e se reconciliar consigo mesmo e com os outros sem se queimar.
Se inspirou em sua vida pessoal ou seu passado?
Eu não escrevo autoficção, mas, no processo de escrita, é inevitável que as minhas vivências “calcem” as narrativas que crio. Assim, o que há de autobiográfico em “Meu passado nazista” são os ambientes (os lugares por onde passei) e algumas ocorrências (poucas) que tratei de ficcionalizar. Exemplo: o sujeito que “brinca” fazendo a saudação nazista. Isso é algo que testemunhei. E me lembrei disso quando da ascensão da extrema-direita. Alguns amigos paulistanos estavam horrorizados, sem saber de onde aquilo vinha. Eu disse a eles que sempre convivi com os discursos e atitudes que se tornaram comuns e ensurdecedores no âmbito do bolsonarismo. Desgraçadamente, aquilo não era nada de novo para mim. O Brasil no qual cresci sempre foi ultraconservador, fundamentalista, preconceituoso e violento.
O livro conta uma história envolta de violências que passam em branco. Essa é uma realidade brasileira?
Creio que sim. Há um moto-contínuo de barbaridades no Brasil. E, em um país tão barulhento, é incrível o quanto essas violências cotidianas (chacinas, estupros, crimes de ódio, feminicídios) tornam-se um ruído de fundo, um ruído branco. Elas integram a paisagem, parecem brotar do chão (não é o caso, obviamente, mas assim me parece).
No contexto internacional, temos diversos casos de discurso de ódio. Para você, quem mais representa esse discurso atualmente no cenário político? Quais são os perigos desse discurso?
Creio que o bolsonarismo talvez seja o exemplo mais visível, muito embora haja outros exemplos, surgidos ou não à sombra daquele, mas com características próprias. Pela sua própria natureza, esses discursos apontam para a obliteração do outro. Eles não só apontam como buscam legitimar a obliteração do outro. Em um país que sempre conviveu com violências de todo tipo, a existência e o crescimento desses discursos nos colocam em um ambiente de conflagração constante. As discordâncias políticas se tornam diferenças irreconciliáveis. E, para aqueles que vivem nas periferias, por exemplo, o recrudescimento do ódio significa a morte, simbólica ou literal.
A extrema-direita ainda apresenta esses discursos? Onde podemos ver esses discursos? Quem os representa?
A extrema-direita representa, sim, esses discursos, mas não só ela. Com a escalada do conflito entre palestinos e israelenses, vi muitas pessoas à esquerda, autoproclamadas progressistas, vociferando um antissemitismo disfarçado de antissionismo. Mal disfarçado, frise-se. Entre a extrema-direita, basta assistir à TV Câmara para ouvir uma infinidade de absurdos. Homofobia, transfobia, racismo, machismo, truculência: é possível testemunhar tudo isso no decorrer de qualquer sessão plenária ou das malfadadas comissões.
O avô nazista apresenta uma visão de mundo retográda. Como isso ainda é presente no mundo atual? É de maneira velada?
O extremismo representado pelo avô do protagonista não só continua presente como tem crescido, e de maneira nada velada. Creio que já citei alguns exemplos brasileiros. Para voltar à Alemanha, país natal do personagem, não custa lembrar que o partido Alternativa para a Alemanha, de extrema-direita e com um fortíssimo bodum nazista, tornou-se um dos maiores do país. E Trump voltou com tudo à presidência dos Estados Unidos. Em seu primeiro mandato, ele disse que havia “boas pessoas” entre os supremacistas que marcharam em Charlottesville. No segundo, imagino que marchará com eles.
Logo que Trump entrou para a Casa Branca, Elon Musk fez uma saudação nazista, apesar de negar. Ele representa essa visão preconceituosa do mundo?
Ele não só representa o que há de pior como adquiriu uma plataforma (o ex-Twitter) para que extremistas de todo tipo possam se “expressar”. Musk também participa ativamente do desmonte da máquina estatal norte-americana, aparelhando a estrutura do país com seus “minions”. São cupins. Não acho que o “experimento democrático” dos EUA sobreviverá a isso, até pela debilidade da oposição. E não faço ideia do que virá a seguir.
Como foi o processo de criação desse livro? Por que abordar esses assuntos?
Em 2018, publiquei no meu blog um texto intitulado “Meu passado nazista”, no qual relembrava coisas que testemunhei enquanto crescia no interior de Goiás. Acho que o germe do romance está ali. Quando terminei de escrever “Vento de queimada”, meu romance anterior, em 2021, olhei ao redor (Bolsonaro, pandemia etc.) e senti que era o momento de lidar com certos temas. O mais difícil foi encontrar o tom daquela voz em primeira pessoa, para que não soasse “confessional” ou travada. É muito difícil escrever em primeira pessoa. A voz do narrador precisa sustentar o livro inteiro, precisa ser atraente, engraçada, agressiva ou o que for, mas sempre interessante. Eu concebi a estrutura (um livro dentro do livro, bem como narrativas independentes escritas pelo protagonista), criei os eventos mais importantes da história, e a partir daí “soltei” aquela voz. Foram dois anos de trabalho.
O livro se passa desde 1990 até 2020. O que mudou de lá pra cá? Como abordar essas mudanças e como isso é mostrado no protagonista?
Creio que as mudanças foram negativas. Eu nasci em 1980, de tal forma que vivi intensamente os anos noventa. Talvez fosse a minha cabeça adolescente, mas havia a impressão de que, não obstante eventuais percalços, o Brasil estava no caminho de se tornar um lugar relativamente civilizado. Meus pais assinavam a VEJA e eu lia longas entrevistas de Fernando Henrique Cardoso nas quais ele citava bateladas de autores. Havia uma discussão de ideias, mesmo de projetos. Mas, como ficou patente desde a última década, a Nova República foi um voo de galinha. Não sei como chamar isso que vivenciamos hoje.