Texto publicado no Estadão em 11.12.2024. Leia abaixo ou AQUI ou clique na imagem para ampliar.
Dados o aspecto reservado da personalidade do escritor curitibano Dalton Trevisan (1925-2024) e a forma como ele conduziu sua vida profissional, a melhor maneira de abordar sua enorme contribuição à literatura é ignorar detalhes pessoais e privados e se fixar na produção ficcional. O epíteto que lhe infligiram, relativo ao título de seu livro mais conhecido, O vampiro de Curitiba, diz muito do estranhamento com que costumam ser vistos autores que preferem deixar que as obras falem por si, mantendo-se longe dos holofotes e da interminável procissão de egos que caracteriza o meio literário. Trevisan ocupou-se de escrever e de silenciar, e foi genial em ambas as atividades. Graças à primeira dessas atividades, foi agraciado com os prêmios Camões, Machado de Assis, Portugal Telecom, APCA, Biblioteca Nacional e Jabuti, entre outros.
Embora tenha escrito um romance, A polaquinha, e novelas como Mirinha e Nem te conto, João, Trevisan firmou-se como um dos melhores e mais inventivos contistas brasileiros desde Novelas nada exemplares, lançado em 1959. Antes, publicara histórias em folhetos e na revista Joaquim (1946-48), fundada por ele, Erasmo Pilotto e Antônio P. Walger. A concisão, “o olho aberto no escuro”, a utilização e reinvenção da linguagem coloquial, as imagens (“Bastava dizer João, eu beijava o sexto dedo do pé”; “cada morto é uma flor de cheiro diferente”; “O tropel de corvos no telhado: era a chuva”) e as repetições, elipses e supressões — tudo isso já marca presença em Novelas nada exemplares.
Ao se fixar nas existências corriqueiras, mais a-heroicas do que anti-heroicas, e não raro marcadas por ocorrências trágicas (“A mulher chorava de pé, a cabeça apoiada na parede. Uma vizinha esfregava vinagre nos pulsos do menino desmaiado. Debruçou-se o pai na cama — a criança virou o branco do olho”) ou ridículas (“Paulo reparou nas duas sombras. Uma, bule de chá, gorda e grávida. Outra, selvagem albatroz da noite, abrindo asas na glória de arremeter voo”), Trevisan cria e recria dramas domésticos e não raro comezinhos, elevando-os por meio de um trato único com a linguagem e as estruturas narrativas.
Tomemos como exemplo o que ele faz no conto “A visita”, de Cemitério de elefantes (1964). Uma mulher visita o amante, acompanhada pela filha “doentia, de grandes olhos machucados”. A criança é o álibi, pois a mulher não quer “ficar falada”. Após trancar a menina no banheiro, ela e o amante se entregam ao objetivo da visita. Depois, o casal ainda na cama e a menina no banheiro, a mulher conta uma história envolvendo a própria mãe e o amante desta. A narrativa “interna”, em primeira pessoa, no corpo de um diálogo, adensa a narrativa “externa”, em terceira pessoa. As elipses são radicalizadas: “Não basta que mamãe… Certa manhã descobri o que mamãe era”. As ironias são lancinantes: “Não gostava de Nestor, não sei por quê. (…) Eu recolhia as pontas de cigarro dele e fumava no banheiro. Sonhava todas as noites com ele”. Dois casais de amantes, duas filhas solitárias — uma delas, a protagonista de ambas as histórias. Em um só conto, duas narrativas que se espelham.
Trevisan jamais aliviou suas marcas narrativas e estilísticas, mas tratou de levá-las ao extremo. Assim, elementos do sujeito acanalhado que repara nas “duas sombras” em “Idílio”, das Novelas, e do amante grosseiro d’“A Visita” (“Você parece louca, Ema.”), por exemplo, reaparecem com maior violência no conto-título d’O vampiro de Curitiba, na voz do famigerado Nelsinho: “Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento”; “Toda família tem uma virgem abrasada no quarto”; “Mãe do céu, até as moscas instrumento de prazer — de quantas arranquei as asas?”. A boçalidade e a raiva do macho brasileiro, estuprador em potencial ou violador contumaz, são traduzidas à perfeição desde a estruturação tensa, abrasiva e rascante dos períodos compostos por Trevisan. A violência do texto ecoa a violência da rua ou da alcova, bem como a brutalidade do toque indesejado e do olhar vampirizador.
Um dos desdobramentos mais extraordinários da radicalização dessa estilística se dá nos microcontos de Ah, é?, 234, Pico na veia e Arara bêbada, lançados entre 1994 e 2004. As “ministórias” presentes nesses e outros volumes da mesma época não são maneirismos, mas expressões cristalizadas de um autor no auge da forma: “Reinando com o ventilador, a menina tem a ponta do mindinho amputada. Desde então as três bonecas de castigo, o mesmo dedinho cortado a tesoura”; “Eu? Nove lances, eu? É mentira da moçada. Uma delas grávida? O que eu tenho são três assinados. Não sei dizer, não. (…)”; “Assim o cãozinho quer pegar no chão a sombra do voo rasante do pássaro, você persegue no tempo a lembrança em fuga dos teus mortos queridos”.
Em uma bibliografia extensa e geralmente associada à repetição, impressiona como o autor jamais se perde. Do teor arquetípico dos joões e marias de Guerra conjugal (1969) aos batimentos do “coração delator do tempo” (o relógio) que marcam O beijo na nuca (2014), há um tensionamento que sempre transforma o mesmo em algo novo. É como se Curitiba e seus habitantes continuamente nos escapassem ou se tornassem outros, e outros, e outros, deixando estilhaços, fragmentos e restos humanos que, somados, apontam para uma completude maior, uma integridade ulterior — a própria obra literária de Dalton Trevisan.