Uma boa surpresa (dentre várias outras) que tive assistindo a “Megalópolis” foi constatar que a estrutura narrativa do filme é absolutamente convencional, com os três atos muitíssimo bem delineados. Eu temia que, dominado pela húbris, Francis Ford Coppola tivesse sucumbido sob o peso das próprias ideias e do tamanho de um projeto acalentado há décadas e financiado com seus próprios recursos. Não é o caso.
Mas essa constatação leva águas para outro moinho. Reli algumas críticas (positivas e negativas) publicadas desde as primeiras exibições do filme e, em muitas delas, tive dificuldades para enxergar ali a obra que vi na tela. Não há nada da “bagunça” que alguns apontaram. É como se, em alguns casos, o crítico (ou “crítico”) visse a si mesmo vendo o filme através de um filtro no qual se acumulam zilhões de preconceitos e expectativas desencontradas. Ou seja, a “bagunça” estava nos olhos de quem viu.
Sim, sim, todos alimentamos expectativas, é algo inescapável (falo a respeito das minhas daqui a pouco), mas também estou me referindo a algo diferente: há muita gente que não vê (ou lê) a obra pela obra, a obra pelo que ela é ou tal como se apresenta, cinematográfica ou literariamente falando, mas, sim, mediante uma impressão ou uma ideia difusa do que ela (obra) “deveria” ser. Essas pessoas não se abrem ao que veem ou leem, desarmadas, mas se fecham de forma antecipada e julgam “saber” exatamente o que esperar. Se a obra corresponde a essa expectativa (boa ou ruim), está tudo certo, “eu já sabia” etc. Se a obra foge a essa expectativa, é rejeitada logo de cara. Não há curiosidade. Não há espaço para/possibilidade de surpresa.
Eu vi “Megalópolis” esperando que fosse desastroso, mas por uma boa razão: desde meados dos anos 1990, os filmes de Coppola oscilam entre a mediocridade (“O homem que fazia chover”) e a extrema ruindade (“Jack”, “Twixt”). Esperava que “Megalópolis” fosse desastroso, mas em nenhum momento me fechei para a possibilidade de que fosse bom ou mesmo excelente (ou sequer teria ido ao cinema). Em outras palavras, mesmo esperando pelo pior, fui desarmado à exibição e vi o filme com os olhos bem abertos. E “Megalópolis” foi uma ótima surpresa, tanto quanto “Dias perfeitos”, de Wim Wenders. Sim, são filmes muito, muito diferentes entre si, mas cito Wenders porque seu trabalho no cinema de ficção descarrilhara feio após “Asas do desejo”. Há essa coincidência entre eles: dois cineastas que perderam a mão.
Não é absurdo trazer Wenders para a conversa também por outra razão: “Hammett” (1983). Caso não saiba do que se trata, sugiro que veja o filme e leia a respeito de sua conturbada produção. Ali, Coppola (no papel de produtor) fez com Wenders o que reclama que os executivos dos estúdios de Hollywood fazem com os artistas de verdade. Curioso, não? Ironias assim sempre me divertem.
A trajetória de Coppola também é curiosa porque a ideia que ele parece ter a respeito de si foi sistematicamente desmentida ao longo de quase seis décadas. Embora quisesse se firmar como uma espécie de auteur, um realizador independente de filmes “pequenos” e ousados, seus melhores trabalhos (a trilogia “O poderoso chefão”, “A conversação” e “Apocalypse now”) são narrativamente clássicos, além de financiados e/ou distribuídos por majors. Sim, o homem enterrou dinheiro próprio em “Apocalypse now” e quase se estrepou por isso (ele se estreparia feio poucos anos depois, com “O fundo do coração”), mas a United Artists distribuiu o longa. Não é por estabelecer sua produtora Zoetrope em San Francisco que ele escaparia dos estúdios, do “sistema”. Não escaparia e não escapou. Toda essa conversa me parece sintoma de autoengano.
Quando deu com os burros n’água (ou numa das vezes em que deu com os burros n’água), Coppola voltou correndo para o colo da Paramount e fez o terceiro “Chefão”. E, como ainda tivesse dívidas para quitar, sugou 40 milhões de dólares das tetas da Columbia e entregou “Drácula de Bram Stoker” — seu último grande filme antes de “Megalópolis”, aliás.
Mesmo os (ótimos) filmes “pequenos” que fez após o fracasso financeiro de “O fundo do coração”, como “Vidas sem rumo”, “O selvagem da motocicleta” e “Tucker”, são estruturalmente clássicos, isto é, obedecem a uma gramática narrativa formalizada no cinemão norte-americano desde (ou a partir de) Edwin S. Porter e D. W. Griffith. E não custa lembrar que um dos grandes colaboradores de Coppola é o montador Walter Murch, criador da famigerada “regra dos seis” (ele a explica AQUI).
Óbvio que o trabalho sob parâmetros bem estabelecidos não impede a inovação. Na verdade, não é raro que tal rigidez resulte em inovações mais consequentes, isto é, direcionadas a objetivos específicos ou resultantes de problemas pontuais. Vide o trabalho revolucionário do próprio Murch com o som em “Apocalypse now”, por exemplo, ou a ousadia trevosa do fotógrafo Gordon Willis na trilogia “O poderoso chefão” (especialmente no segundo), exemplo genialíssimo de subexposição.
Em “Megalópolis”, Coppola se movimenta dentro daquela estrutura narrativa sedimentada e, sem extravasá-la (o que arruinaria o filme), brinca com ela, força, empurra, ironiza e autoironiza. Os alicerces do filme são todos clássicos, desde o discurso (roteiro, mise-en-scène, montagem) até os discursos (Shakespeare, Cícero, Marco Aurélio). Mesmo os excessos ocorrem coerentemente no âmbito de regiões bem delimitadas. Tome-se como exemplo a extraordinária sequência no “Coliseu”. Apenas um criador com pleno conhecimento das possibilidades e dos limites de seu modelo narrativo conseguiria alinhavar de forma tão brilhante tantos e tão variados elementos que não só correm paralelamente como num crescendo estonteante e muito divertido. Apenas com tesoura e cola (não literalmente, claro), Coppola nos dá todas as informações necessárias acerca de cada um dos personagens principais, faz a história avançar e, ao mesmo tempo, insere uma lisergia capaz de comentar aquelas mesmas informações e criar sentidos ulteriores. Como se não bastasse, ele ainda coroa a sequência com o discurso mais célebre das “Catilinárias”, enunciado, é claro, por Cícero (Giancarlo Esposito) — “Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência…”. Tudo ali é primoroso.
As reverberações políticas e as metáforas acerca da criação artística em “Megalópolis” exigiriam outros textos. Aqui, limito-me a sublinhar a fala do banqueiro interpretado por Jon Voight (que ficou a cara da Judi Dench com aquele cabelinho): “América kaputt”. Antes, um de seus sobrinhos (Shia LaBeouff) berra para a massa enraivecida: “Vamos pegar o nosso país de volta!”. O problema é quando não há mais país algum para retomar.
Em “Megalópolis”, a cidade não é retomada, mas reimaginada e construída sobre novas bases. O filme tem um final feliz, condizente com tudo aquilo que eu procurei ressaltar acerca do jogo narrativo no qual se fia, cujas regras Coppola segue coerentemente do começo ao fim. Mas nada me afasta a impressão (corroborada por meus olhos) de que aquele bebê flutua no vazio.
(Sacaneei os cabelos do Voight, mas ele é uma das melhores coisas do filme. Todo o elenco está fenomenal.)