Tagarelas e incendiários

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Um conhecido foi a uma agência dos Correios. Enquanto esperava ser atendido, foi sequestrado. Não, não literalmente. Outra pessoa que também estava por ali tratou de sequestrá-lo para uma conversa despropositada. Tagarelas agem como buracos negros, sugando os incautos que tiveram a péssima ideia de deslizar por seu horizonte de eventos. Isso, para mim, é uma forma de sequestro. E do pior tipo, porque o sequestrador não pedirá resgate nem — caso seja uma pessoa honesta no âmbito desonesto de seu trabalho — libertará o sequestrado. Sim, poucas coisas são tão deseducadas quanto sequestrar um estranho para uma conversa despropositada. Isso não se faz, caramba.

E sobre o que o tal sujeito começou a tagarelar com o meu conhecido? O conceito de akrasia em Aristóteles? As estupendas atuações de Fabinho no meio-campo do Liverpool? O uso da montagem no esgarçamento da violência no cinema de Peckinpah? Não, nada disso. Como estavam em uma agência postal, ele começou a tagarelar sobre a privatização dos Correios. Em como o governo — que, segundo ele, faria muito mais se não fosse tolhido por coisas chatas e bobas como a Constituição — está certíssimo em “privatizar essa porcaria”. Acabou a mamata, certo?

Em princípio, não sou contra privatizações. Mas, também em princípio, sou totalmente contra qualquer privatização ou reforma levada a cabo pelo governo atual. Por quê? Ora, porque o governo Bolsonaro é inepto e iliberal. E o termo “iliberal” vai aqui em sua acepção mais ampla. Falei a esse respeito meses atrás, na coluna do dia 2 de março, quando citei uma entrevista que a economista Deirdre McCloskey cedeu ao Estadão: “A ideia principal do liberalismo é que não haja hierarquias: homem sobre mulher, heterossexuais sobre gays ou Estado sobre indivíduos”. Liberalismo envolve respeitar as liberdades e escolhas individuais conforme princípios democráticos basilares. Quando o neointegralismo bolsonarista (ou o stalinismo zumbi do outro extremo) fala em liberdade, ele está se referindo à liberdade para oprimir. Mas voltemos aos Correios.

Quando o meu colega cometeu o erro de redarguir à ladainha do fulano (nunca, jamais, discuta com cretinos), pontuando que talvez não fosse o caso de privatizar os Correios por agora, de forma tão descuidada e onerosa, a resposta do outro foi impagável. Ele não contra-argumentou. Ele não levantou razões pelas quais a privatização seria, sim, aconselhável. Nada disso. Ele fez uma careta de nojo e disse: “Você tem cara de universitário”.

Você sabe que está atolado em um país de idiotas desvairados quando o fato de a pessoa parecer alguém que se dedica ao estudo e à busca do conhecimento seja algo não apenas ruim, mas passível de desprezo. Sim, é isso mesmo. No Brasil, “universitário” é xingamento.

Em vista de tudo isso, não surpreende que o próximo dia 7 de setembro servirá não para celebrar a nossa independência e a comunhão das diferenças que formam (ou deveriam formar) a nação. Não, não. Ao que tudo indica, servirá para extravasar a sanha golpista daqueles que, animados por mentiras e pelo ódio, querem se curvar à mesmidade obtusa de uma nova-velha ditadura. Vivemos sob a certeza do eterno retorno do fogo