Filme-navalha

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Não é por acaso que passagens e colagens de Histoire(s) do Cinéma são reaproveitadas em Imagem e Palavra. Muda, entretanto, o sentido: se naquele projeto levado a cabo por Jean-Luc Godard entre 1988 e 1998 havia (também) a preocupação de ressaltar certa pluralidade e erigir uma rica contra-história do cinema, agora esse friccionar serve mais para explicitar a crise estética e moral de qualquer possibilidade de representação. O termo crise, como nos lembrou Mário Ferreira dos Santos, remete à separação e ao abismo. Assim, a voz de Godard ecoa das profundezas do nosso presente, e não tem mais — como em Histoire(s) — o tom convocatório de uma (re)descoberta.

Não é só aquele cinema que, sob certos aspectos, morreu, mas o nosso próprio olhar — uma das primeiras imagens do filme é de Um Cão Andaluz, de Buñuel, o olho aberto para a navalhada que, contudo, não é mostrada. Godard parece sugerir que seu próprio filme, aquilo que se desenrola a partir dali, de certo modo corresponde ao gesto violento tantas vezes reprisado:

Cão

Nosso olho é, portanto, vazado pelo filme-navalha que desliza pela hora e meia (nem isso) seguinte. Só assim para vislumbrarmos o abismo. A preparação do olho é o próprio ato de vazá-lo. Ou, antes, dada a imagem da mão que também irrompe por ali: a explícita manipulação do olho prepara o caminho para o abismar-se.

Em Adeus à Linguagem, como escrevi AQUI, Godard aponta para o modo como a depauperação da linguagem (ou dos usos que fazemos dela) redunda(m) num empobrecimento da nossa própria relação com o tempo. Perdida a dimensão interior do tempo, passamos a viver em um presente estrangulado e não nos é mais possível tocar ou ouvir a ideia que nos precede e sustenta. Em tal surdez, subjaz uma ignorância que é antes de tudo ontológica. Imagem e Palavra é um desdobramento do longa anterior em sua radicalidade: passamos da surdez à cegueira.

O cinema surge e se desenvolve em um contexto pós-humanista. A rigor, o humanismo implodiu ainda no século XVIII, tornou-se mais uma dentre tantas carcaças espalhadas por aquela Europa que seguiu se afogando no próprio sangue (e no sangue alheio) pelos duzentos anos seguintes. Godard é um dos poucos — em se tratando de cinema, o único — a mostrar não que o rei está nu, mas, sim, que o rei está morto. Não custa lembrar que, já no século XX, apenas picaretas como Sartre tiveram a empáfia de usar o conceito de humanismo no âmbito de uma discussão (pretensamente) filosófica (ou, no caso dele, pseudofilosófica). Heidegger colocou o francês em seu devido lugar, lembrando o óbvio: “a inversão de uma frase metafísica permanece uma frase metafísica”.

Mas o que isso tem a ver com Godard?

No meu entender, muito embora o cineasta não invista em um tatear de cunho ontológico, a crise que ele explicita, esse abismar-se no abismo, também aponta para aquela crise maior ou anterior. Assim: navalhado o olho, Imagem e Palavra revira, desmembra e exibe o cadáver do cinema enquanto locus humanista de representação da realidade. Perceba aí três conceitos caindo de podres, ou não-conceitos: humanismo, representação, realidade. No jogo de sobreposições estabelecido em Imagem e Palavra, cada um deles é interditado de forma minuciosa. Se antes tivemos Histoire(s) du Cinéma, agora seria como se tivéssemos Histoire(s) d’échec, ou história(s) do malogro, do fracasso.

Nas justaposições, deslocamentos e interdições que se valem de uma miríade de imagens e sons, com recortes de Hitchcock, Pasolini, Ford, Mizoguchi, Vigo e muitos outros (incluindo o próprio Godard), nosso olho navalhado vacila entre uma coisa e outra, e tropeça, erra, perde-se. O fracasso representacional do cinema reflete, assim, o fracasso do nosso olho, e o fracasso do nosso olho é, também, indício do nosso fracasso civilizacional.

A realidade, seja lá o que ela for, ri dos nossos esforços de abarcá-la — observe como Godard às vezes mistura imagens violentas de filmes com flashes de massacres reais; e note como ambas as coisas possuem um incontornável vigor estético, sobretudo quando justapostas dessa maneira. A permuta entre o “real” e o “ficcional” cria uma terceira e ruidosa ordem de imagens, no intervalo entre uma coisa e outra. A crise está no intervalo; o abismo é uma tal interdição, e fala por meio desse aparente descarrilhar de planos e sons que brigam uns com os outros para alcançar sentidos ulteriores, imprevisíveis, e nos pegar pelo contrapé.

Quanto ao fracasso civilizacional, Godard recorre mais uma vez ao Oriente Médio para sublinhar a pobreza anímica europeia. De certo modo, ele retoma temas já explorados em vários outros filmes, como Para Sempre Mozart (no modo como reflete sobre a nossa relação com as imagens de conflagrações, atentados, execuções e bombardeios; discorri sobre esse longa AQUI) e Filme Socialismo (a história europeia como o desenrolar de uma mesma e interminável crise, como tentei apontar AQUI), sem falar em Tempo de Guerra, Infelizmente para Mim e o levinasiano Nossa Música.

De novo, e sempre, é o arrastar ruinoso do cadáver humanista. Frente ao esgarçamento e às catástrofes que testemunhamos cotidianamente, nosso vocabulário se mostra cada vez mais insuficiente e as imagens, tornadas gratuitas, adquirem o teor pornográfico que, longe de dar conta do mundo, acaba por substituí-lo por um falsear grotesco. Por fim, que a voz de Godard seja também ela interditada (engasga, tosse, pigarreia) a certa altura de Imagem e Palavra diz muito daquilo que, em Nossa Música, ele chamou de “o estado preciso de nossa miséria”: até quando será possível falar?