Texto publicado hoje no Estadão.
Na obra de Amós Oz estão a violência intrínseca ao doloroso trabalho de parto do Estado de Israel e à sua manutenção nos moldes atuais, o “sonho bonito” dos primeiros tempos e a aridez de uma sociedade cindida. Longe de ser uma voz solitária ecoando desde o deserto, à beira do qual vivia, Oz se esforçou para entrever nas rachaduras de seu tempo um futuro que evitasse repetir a tragédia daquela longa noite europeia, a Shoah, e ao mesmo tempo assegurasse uma coexistência civilizada e pacífica com os vizinhos árabes. Não estava sozinho nisso, pois nomes como David Grossman e A. B. Yehoshua também se esforçam nesse sentido, mas ele foi por certo a voz mais firme e equilibrada dentre seus pares.
Contudo, por mais importante que seja o ativismo político exercido por ele, notório defensor da chamada “solução dos dois Estados”, sempre buscando saídas para colocar fim no conflito israelo-palestino, é como ficcionista que será lembrado. Romances como A Caixa Preta e Pantera no Porão são preciosos por compor um mural da vida judaica naquele pedaço de terra, e isso desde antes da fundação do Estado israelense. Seja lidando com a vida em um kibutz (como em Uma Certa Paz), seja tangenciando uma Jerusalém sempre fugidia, que “nos deixa tristes”, mas de “uma tristeza diferente a cada momento e a cada estação do ano” (em Meu Michel), esses livros desvelam um país em formação e, não raro, em deformação. E jamais se distanciam do teor político – como poderiam? Em uma terra conflagrada, a política pontua de forma decisiva a vida doméstica e a vida intelectual. Honrando o sobrenome que escolheu para si, Oz teve a coragem de jamais tergiversar ou desviar o olhar.
Todos esses elementos – históricos, familiares, políticos – marcam presença em sua obra-prima, o romance autobiográfico De amor e trevas. Nele encontramos tanto o irrealizado “sonho bonito” de uma nação quanto o pesadelo concretizado pelo suicídio da mãe do autor, quando ele contava apenas doze anos de idade. De certo modo, a sombra dessa morte espelha a sombra abissal da Shoah. Egressa de um mundo aniquilado pelos nazistas, a mãe de Oz sucumbiu à depressão. Sua história e a história de tantos outros é resgatada pelo escritor.
Assim, nós nos despedimos de Amós Oz ressaltando a integridade e o cuidado com que abordou o tempo e o lugar onde viveu, aberto inclusive para a “luz aguçada, muçulmana”, mesmo que “entre sete véus de neblina”, como lemos em A Caixa Preta. É certo que, conforme a protagonista de Meu Michel, “escrever tudo é impossível”, pois “grande parte das coisas escapa para morrer em silêncio”. Mas o grande escritor é aquele que atenta ao que não escapa e se perde. É pouco, mas é a argamassa do nosso mundo.