“Eufrates” n’O Globo

Resenha publicada na edição de ontem d’O Globo.

DrFZiBUX4AECcYH

O DESASSOSSEGO DIANTE DA BRUTALIDADE DO DIA A DIA
Romance caudaloso de André de Leones entrelaça histórias viajando por tempo e espaço

Por Juliana Krapp.

O táxi avança pela Marginal Tietê quando se depara com um acidente, o corpo morto engolfado pela lataria de outro veículo. No banco do carona, um dos protagonistas de “Eufrates” desvia os olhos. Sempre lhe impressionam as marcas de sangue, couro e borracha misturados na derrapagem. “Couro humano. Vivo e, logo depois, não.”

Desde que estreou com “Hoje está um dia morto” (2006), o escritor goiano André de Leones tem trazido à luz personagens marcados pelo aturdimento ante a reiteração de que a vida — seja em sua face literal, seja como representação de rotina e estabilidade — está sempre por um triz. Suas histórias têm como mote separações, recomeços, perdas afetivas, mortes. Tramas que lidam com a alternância de focos narrativos para compor mosaicos de personagens à deriva, tomados pelo embotamento e pelo luto, às voltas com a impossibilidade de alcançar o outro.

Romance caudaloso, que entrelaça inúmeras histórias ao serpear por tempos (entre 1991 e 2013), cidades (São Paulo, Brasília, Buenos Aires, Belém do Pará, Jerusalém) e personagens distintos, “Eufrates” é o resultado mais ambicioso desse projeto literário de marcas bem definidas. Sua espinha dorsal é a amizade entre dois jovens, o professor de inglês Moshe e o corretor Jonas, irmanados na brutalidade de perdas e reveses, mas também na sensação de desajuste e de prostração.

Leones reafirma uma marca nítida em sua obra: a busca por refletir o desassossego contemporâneo, no encalço de homens e mulheres de classe média, flagrados na banalidade do cotidiano. Assombrados pela teia de violências que se imiscui, fantasmagórica, ao espaço trivial dos dias. Violências de naturezas e contundências múltiplas. A mãe de Moshe morre num atentado terrorista. Uma jovem comemora o aniversário numa churrascaria e, enquanto os convidados bebem e comem à mesa, sem sequer notar sua ausência, se enforca no banheiro. Em sua primeira entrevista de emprego, Jonas constata a necessidade de simular um padrão de conduta sem nenhuma autenticidade.

Para perseguir essa teia de violências e opressões, o autor usa como estratégia o empenho em capturar as minúcias da rotina, o mal-estar que se instaura num vazio tipicamente contemporâneo. Diálogos balbuciantes ou desbocados, refeições, uma toalha esquecida sobre a banheira, reminiscências. Leones se prolonga em descrições de cenas onde quase nada acontece, passeando pela memória e pelas impressões dos protagonistas, engordando a trama até roçar o limite da exaustão. Isso acaba construindo um tom aflitivo, um atrito entre a delicadeza do olhar sobre a cena e o alheamento de personagens que, afinal, não conseguem estabelecer uma comunicação eficaz entre si.

Consistente e produtivo
É nesse trabalho intrincado de desmantelar os personagens, mergulhando-os quase até a asfixia para só aos poucos trazer à tona os acontecimentos, que se situa o grande trunfo de “Eufrates”. Por outro lado, é justamente nesse ímpeto pelo excesso que o romance por vezes derrapa, atado a certas reiterações e redundâncias. Além disso, encarada de soslaio, a dimensão psicológica de alguns personagens se esvai em generalizações pueris, como a evangélica que recusa o sexo em nome do fervor religioso.

Ainda assim, este novo livro atesta o trabalho vigoroso e a maturidade de um dos autores mais consistentes e produtivos da ficção brasileira atual. Seus méritos não são poucos. Um deles é reiterar a capacidade de Leones para estabelecer um projeto literário coeso — Eufrates, vale lembrar, já é seu sétimo livro.

Há que se destacar também a habilidade em narrar as atividades e fantasias sexuais dos personagens, com descrições realistas que conseguem escapar ao grotesco e ao evasivo. Como se sabe, a ficção brasileira — e mesmo a estrangeira — não costuma ser pródiga em narrativas bem-sucedidas sobre a dimensão lúbrica da vida. Em “Eufrates”, no entanto, o desejo, as peripécias e frustrações sexuais ocupam uma centralidade que enfatiza ainda mais a argúcia técnica do autor.

Já o contexto político aparece apenas de viés, o que acentua a contundência dos silêncios e dos desencontros, do alheamento e do desamparo. Mas é o que acentua, também, a sua própria atualidade. Numa das cenas, os dois protagonistas tomam chope na Rua Augusta, no período das manifestações de 2013. Revelam desinteresse pela massa de jovens a ocupar as ruas. Moshe os nomeia “espíritos irrequietos”, Jonas gargalha. “Estamos todos mortos”, justifica, ressaltando que ninguém sabe disso. E que tampouco vai aparecer alguém para contar.