João Gilberto Noll
(1946-2017)
“É o seguinte: eu sinto meus personagens como seres projetados do inconsciente para a tela. Como os pintores expressionistas, que costumavam projetar a tinta na tela, não preocupados de antemão com as significações daquilo. Se eu tiver alguma coisa a oferecer ao leitor, isso vem do fato de que eles – e eu – trabalhamos numa construção às cegas, sem partir de temas abstratos, como o plano social ou político. Houve um tempo em que se acreditava que a literatura fosse um referendo a credos políticos, ideológicos, e tal. Essas coisas abstratas não me ajudam a escrever. No meu caso, o que ajuda à escrita, é uma sintonia visceral com o motor do inconsciente. E, para me arregimentar com saúde para essa viagem nada programada, eu começo o trabalho me jorrando através das palavras. Nesse início, aliás, as frases servem apenas para deixar o inconsciente passar, e esse processo me dá o tom, até então imprevisível. Depois do fim da narrativa, eu volto ao começo para refazê-la, já que aquilo ali era só um aquecimento, um tatear no escuro, um exercício para que eu pudesse encontrar a ficção. Acho que jamais escreverei um livro baseado em fatos históricos, sociais ou econômicos. Me identifico plenamente com aqueles versos de Drummond, ‘Mundo, mundo, vasto mundo/ mais vasto é o meu coração’. Eu quero a subjetivação sofrida. Escrevo compulsivamente sobre as torturas da alma que não exibimos no meio social.”
Em entrevista ao blog Máquina de Escrever.
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“A questão da solidão é muito política. A solidão nas grandes cidades é uma questão política. Quantos estão absorvidos em si mesmo sem conseguir uma ponte para qualquer coisa que se chama de humano? Eu sou um autor obsceno, sim. Obscenidade é uma coisa que sempre me chamou atenção na literatura. Chamar as coisas pelos nomes que elas têm, sexualmente falando. Uma coisa que sempre me inspirou muito foi porta de banheiro público, o lado interior da porta. As pessoas se ‘desrecalcando’ ali, dizendo coisas que elas não diriam no plano social. Acho que a literatura é muito isso. É a palavra destituída daqueles ranços todos. É a palavra com essa crueza.”
Em entrevista ao site Saraiva Conteúdo.
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Os colegas me ensinaram a jogar futebol, a me masturbar e a roubar a comida dos padres. Eu ficava de pau duro e mostrava aos colegas. Mostrava as maçãs e os doces do roubo. Contava do meu pai. Um deles me odiava. O meu pai foi assassinado, me dizia ele com ódio nos olhos. O meu pai era bandido, ele contava espumando o coração.
Eu me calava. Pois se referir ao meu pai presumia um conhecimento que eu não tinha. Uma carta chegou dele. Mas o padre-diretor não me deixou lê-la, chamou-me no seu gabinete e contou que o meu pai ia bem.
— Ele vai bem.
Eu agradeci como normalmente fazia em qualquer contato com o padre-diretor e saí dizendo no mais silencioso de mim:
— Ele vai bem.
O menino que me odiava aproximou-se e falou que o pai dele tinha levado dezessete tiros.
Trecho do conto Alguma coisa urgentemente.