Resenha publicada no Estadão em 16.06.2012.
A memória de nossas memórias, terceiro romance da norte-americana Nicole Krauss, é estruturado a partir de cinco narradores dispersos no tempo, no espaço e em si mesmos. De certa forma, o livro é um acúmulo de situações vividas por desterrados ou que aludem, direta ou indiretamente, ao desterro. A conexão entre a maior parte dos personagens é feita por um objeto, uma escrivaninha que atravessa o século 20 como a própria seta ensanguentada do tempo. Convém ressaltar que, felizmente, Krauss não esboça coincidências absurdas nem força encontros inesperados entre essas pessoas. Aqui, os desencontros é que dão o tom.
Há uma descontinuidade inerente a cada uma das circunstâncias evocadas por essas vozes e a elas próprias, que dão voltas, lançam-se ao passado, tergiversam, escondem-se, revelam-se e por vezes se calam. Há coisas sobre as quais não se pode, não é possível falar. Ou, como diz um dos narradores a certa altura, “as histórias eram sempre deixadas incompletas, alguma coisa em sua atmosfera fugidia e inexplicada”.
A escrivaninha simboliza e, em alguns casos, ocupa o lugar do passado trevoso em um presente condenado à incompletude. Com suas várias gavetas, uma delas sempre trancada, é a própria imagem do desterro, da orfandade, de todas as coisas que não conseguimos verbalizar ou conferir significado. Logo no começo do romance, ela é confiada a Nadia, uma reclusa escritora nova-iorquina, por Daniel, um jovem poeta chileno. A ideia é que ele volte para buscá-la, mas isso não acontece. No decorrer dos anos seguintes, Nadia escreverá seus romances sentada à escrivaninha. Eventualmente, descobrirá que Daniel nunca retornou porque fora preso, torturado e assassinado na ditadura de Augusto Pinochet.
Na Inglaterra, Arthur, o viúvo de outra escritora, ela própria dona da escrivaninha por anos, tenta iluminar alguns fatos da vida da esposa. A investigação, mais do que respostas, traz novas dúvidas e inquietações. Sobrevivente do Holocausto, ela optara por se calar a respeito. O viúvo evoca a imagem de seu quarto de solteira, ocupado quase que inteiramente por aquela escrivaninha – a metáfora para o que ela deixou e, sobretudo, para o que ela não deixou para trás. “Você tem de entender que na vida de Lotte”, ele conta, “uma vida reduzida para caber no menor espaço possível, não havia quase nenhum traço de seu passado. Nem fotografias, nem lembranças, nem heranças. Nem mesmo cartas, ou nenhuma que eu tenha visto.” Exceção feita à escrivaninha.
Outra “vida reduzida para caber no menor espaço possível” é a do antiquário Weisz, dedicado a recuperar móveis perdidos por pessoas que, como ele, sobreviveram ao Holocausto. Ele próprio faz de tudo para reconstituir os objetos perdidos por sua família e, assim, tenta recuperar algo que, no fundo, sabe que é irrecuperável, que se perdeu para sempre. Aqui, a mesma escrivaninha – ou a sua ausência – terá um papel dos mais importantes. A questão é a mesma, desse móvel como símbolo do passado e de sua devastação, a ponto de a memória, para o antiquário e outros personagens, ser mais real, “mais precisa do que a vida que vive, que se torna mais e mais vaga”.
Sem ligação direta com a escrivaninha, temos outro narrador, Aaron, um velho advogado israelense. Também viúvo, dirige-se a um dos filhos, Dov, em uma tentativa dolorosa de aproximação, de decifrar o silêncio em que ele se enredou. Dono de uma sensibilidade aguda, Dov queria ser escritor mas, devastado pelo que passou na Guerra do Yom Kippur, renunciou à escrita e ao país, mudando-se para a Inglaterra, distanciando-se da família e investindo na carreira jurídica.
No entanto, uma história concebida por Dov antes de ter o espírito esmigalhado pela guerra talvez nos ofereça uma bela maneira de pensar o próprio romance, tratá-lo como uma narrativa sobre pessoas “deitadas em quartos, ligadas por um sistema de eletrodos e cabos a um grande tubarão branco. A noite toda o tubarão, suspenso num tanque iluminado, sonha os sonhos dessas pessoas. Não, não os sonhos, os pesadelos, as coisas difíceis demais para suportar. Então elas dormem e através dos cabos as coisas apavorantes saem delas e vão para o peixe assombroso com a pele cheia de cicatrizes capaz de suportar a desgraça acumulada”. O livro seria o tubarão, e narrar, uma forma possível de catalisar os pesadelos, de suportá-los e de suportar o que se viveu.
Já perto do fim, Weisz narra sua chegada a Israel, aportando em Haifa, no Norte do país. Ali, viu uma mulher que “beijava o chão seco, chorando. Talvez tivesse encontrado sua própria sombra debaixo de outra pedra”. É o que temos em A memória de nossas memórias: seres humanos revirando pedras e procurando incessantemente pela própria sombra e, em alguns casos (como o de Arthur e o de outra narradora, Isabel), buscando a sombra fugidia do outro. No fim das contas, somos todos desterrados.