Texto publicado n’O Popular em 07.03.2017.
Há uma anotação nos diários do filósofo austríaco – naturalizado britânico – Ludwig Wittgenstein (1889-1951), datada de 06 de maio de 1931, que diz o seguinte: “Em Brahms, as cores do som da orquestra são cores das marcações do caminho”. Os diários dele, mantidos entre 1930-32 e 1936-37, vieram a público há pouco tempo e foram lançados no Brasil pela editora Martins Fontes com o título Movimentos de Pensamento. São uma ótima e divertida porta de entrada para as idiossincrasias e reflexões do autor do Tractatus Logico-Philosophicus, dentre outras obras capitais da história do pensamento ocidental.
Antes daquela anotação que citei acima, Wittgenstein discorre sobre como Brahms “compunha com a pena”, ao passo que Bruckner (por exemplo) o fazia “com o ouvido interno & com uma ideia de orquestra tocando”. O procedimento do filósofo é bastante claro: ele identifica as particularidades de cada compositor, usando-as para antecipar seus efeitos desde as próprias notações musicais. O método (ou modo) se refletiria na música ou, para dizer com maior precisão, no casamento entre os temas propostos e os sons que brotam daí.
Claro que há casamentos felizes e infelizes, e, em se tratando de música, contrario Tolstói para dizer que os infelizes são todos parecidos, ao passo que os felizes o são cada qual à sua maneira. Há compositores traídos pelos próprios temas, assim como há outros que são elevados por eles, como o Beethoven da terceira sinfonia, a Eroica, que se inicia de forma um tanto quanto rotineira — até onde podemos chamar Beethoven de “rotineiro”, é claro —, para depois se transformar, mediante um longo e complicado movimento, em uma monstruosidade maravilhosamente desconcertante, e no germe de suas benditas malcriações futuras. Ouvindo a sinfonia, é fácil notar a passagem do classicismo para o romantismo em seu próprio interior. Há uma efervescência criativa que salta aos ouvidos, pouco confiável, imprevisível e genial desde o momento em que se instala no longo e intrincado adagio.
Voltando aos diários de Wittgenstein, ele escreve em 24 de outubro de 1931 que Brahms carece de “senso de cores”. No entanto, tem o cuidado de pontuar que “a ausência de cor já está presente na temática”, e que a única fraqueza de sua instrumentação residiria no fato de “que sob múltiplos pontos de vista ela não é pronunciadamente em preto e branco”. Mas, claro, isso não significa que estejamos diante de um casamento infeliz.
Dias atrás, enquanto ouvia o Deutsches Requiem, eu pensava nessas considerações de Wittgenstein, sobretudo na sinestesia que elas ensejam de maneira tão rica. Acho o réquiem de Brahms belíssimo justamente porque condiz, dada a sua “ausência de cor”, com a opacidade da morte. É diferente do famigerado réquiem de Mozart (em que pesem as polêmicas quanto à sua incompletude, sobre quais partes Mozart de fato terminou e quais foram finalizadas por seu amigo e discípulo Franz Xaver Süßmayr), cuja agressividade é qualquer coisa, menos descolorida, e traduz a perturbação anímica de quem, segundo se diz, julgava compor a própria missa fúnebre.
Brahms, que era luterano, ignorou a liturgia católica e seu latim, valendo-se da língua alemã e de textos apócrifos. Em seu réquiem, fala da morte do ponto de vista dos que foram (ou logo serão) enterrados vivos, por assim dizer. Ouvir sua música é caminhar descalço por uma estrada outonal, forrada de folhas secas, e, em suas anotações, Wittgenstein nos faz enxergar isso muito, muito bem.
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