Trecho de Dentes negros.
O centro comunitário é uma espécie de mercado livre, um galpão com diversas barracas montadas dentro. À primeira vista lembra uma enorme e muito bem organizada feira. Há outros centros, mais modernos, fechados, verdadeiros shoppings centers. Mas não ali, naquela região. No meio do nada ou do que um dia foi um pasto, a algumas centenas de metros da estrada. Há espaço de sobra para que estacionem os carros da forma como bem entenderem e para que os caminhões com os produtos entrem e saiam.
Caixas de som afixadas junto ao teto, nas quatro extremidades e no meio do galpão, ligadas em volume razoavelmente alto, despejam pesadamente a quinta de Mahler sobre as cabeças de todos, vendedores e compradores. Ela sempre se pergunta de onde, afinal, controlam o som. Uma banca escondida em algum lugar, talvez. De dentro de um dos caminhões. Sempre quis saber, mas nunca ousou perguntar. Não perguntar para não ser perguntada. O som é límpido, aberto, mas não exatamente agradável para muitas daquelas pessoas. Música clássica, sempre. Há quem não suporte. Há quem prefira o silêncio. Mas foi a maneira encontrada para que as pessoas não gritassem como se estivessem, de fato, em uma feira.
As bancas dispostas lado a lado e os respectivos donos, devidamente uniformizados e usando toucas e luvas, em silêncio à espera dos clientes. O lugar é exemplarmente organizado. Placas informam onde encontrar o quê. Os fregueses se movimentam pelos largos corredores com suas sacolas, bancas à direita e à esquerda, e encontram facilmente tudo aquilo de que precisam. Entram e saem sem a menor dificuldade.
Ela compra rapidamente tudo aquilo de que precisa. O lugar está bastante cheio, como se todos os moradores da região tivessem percebido ao mesmo tempo que suas despensas estavam vazias. Melhor assim. Não há tempo ou espaço para que a incomodem com as indiscrições de praxe. Em poucos minutos, está de volta ao carro. Pega novamente a estrada, na direção contrária à de casa. Precisa abastecer o carro.
Não chove há semanas. A estrada macia, perigosa. Poeira e nada mais. Ser jogada para fora. Uma freada no momento errado, um pedaço de pau. Mesmo assim, ela pisa fundo. A caminhonete dança, implorando para que ela perca de vez a direção. Uma cerca de arame à direita, um barranco enorme à esquerda. Um animal que surgisse do nada.
Animais não surgem do nada, ela pensa.
Ela liga o som do carro. Um CD player. Encontrou uma pequena caixa com vários discos no guarda-roupa do quarto menor. Joy Division, U2, Radiohead, Beatles, David Bowie. Ela liga o som do carro e She’s lost control toma conta da cabine.
Os vidros estão fechados por causa da poeira. Ela quase perde a traseira da caminhonete em uma curva particularmente acentuada. Não vê nada do outro lado. Viesse um carro na direção contrária e bateriam de frente. Tão poucos acidentes hoje em dia. As pessoas pararam de fumar e de beber. Sentindo-se privilegiadas por não acabar com os dentes negros e depois de ver parentes e amigos naquele estado. Mortos. É hora de se cuidar. Vida regrada. Obrigado, Senhor. Fazendo jus, Senhor. Sentindo-se abençoadas. As igrejas lotadas. Grandes tendas improvisadas, cadeiras de plástico, cânticos. Um certo sentimento de culpa. As pessoas se sentindo culpadas: todo mundo morreu, menos eu. Desculpa não ter morrido também, mãe. Desculpa não ter morrido também, pai. E há os que crêem num propósito. A maioria. Se eu não morri é porque. Uma missão. Algo que tenho de fazer, mas o quê? As pessoas realmente acreditam nessas coisas. Ela vê e ouve de tudo no centro comunitário. Aguardando um sinal. Uma ligação do Senhor.
As pessoas acreditam em qualquer coisa, ela pensa no momento em que, poucos metros após a linha férrea, avista o posto e começa a diminuir a velocidade.
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Foto: Livia Ramirez.