Bronson

Escrevi este conto há uns quatro anos, depois de aceitar o convite do Diego Moraes para participar de uma antologia tão divertida quanto insólita. Publico aqui uma versão revista (mas não muito).

d46bfa121c4c67f9ad13338bbe95088c

1.
Tudo isso aconteceu há muito tempo, logo depois que o meu pai foi negociar umas cabeças de gado lá pros lados do Kansas, seguindo pela Trilha de Chisholm, e acabou morto a bala numa ocorrência que a minha mãe chamou de “história muito mal contada”.
Mas até hoje eu acho que o pior de tudo, pior até do que o meu pai morrer de um jeito assim tão estúpido, foi a gente nunca ter podido ver o corpo e se despedir dele da maneira apropriada e, claro, enterrar o homem assim debaixo das nossas fuças. Quando alguém morre assim, à distância e sem que se possa velar o corpo e dizer adeus, fica faltando alguma coisa para os que ficaram, feito uma conversa interrompida com brutalidade sem que a última palavra, não importa de quem, seja dita. Acho até mesmo que a gente é assombrado pelo resto da vida por aqueles de quem não pôde se despedir direito.
Quem veio nos dar a notícia foi o sr. McGee em pessoa, e é como se eu ainda pudesse ver os quatro homens, ele e três capangas armados com rifles Spencer, montados em seus cavalos junto à cerca, o sr. McGee dizendo para mim e para a minha mãe que sentia muito, mas estava na cara que eles não sentiam porcaria nenhuma, estava escrito nas fuças deles, não sentiam nada, e que espécie de gente vai dizer para uma mulher que ela ficou viúva e para o filho dela que ele agora é órfão levando consigo três capangas com rifles Spencer e sequer tem a delicadeza de apear do cavalo e tirar o chapéu? Ele contou que o rancheiro que tinha ido com o meu pai negociar o gado, o sr. Burdette, voltou naquela manhã do Kansas dizendo que, durante um carteado num saloon de Abilene, as coisas se precipitaram (foi essa a palavra que o sr. McGee usou), alguém fez ou disse uma coisa que não devia, o outro respondeu e daí a senhora já viu, homens sacando armas e atirando por conta de duas ou três palavras mal escolhidas.
“O mundo é um diacho de lugar perigoso”, disse o sr. McGee e cuspiu de lado, quase acertando a bota do capanga que estava à sua direita.
Sem tirar o chapéu, ele repetiu que sentia muito, muito mesmo, que agora as diferenças que ele tinha com o meu pai não importavam mais, e que o meu pai era um bom sujeito, um sujeito dos mais decentes, do tipo que quase não se encontra mais por aí, e que era uma pena ele ter se deixado levar daquele jeito, morrer numa briga de saloon por conta de um carteado, que desperdício, que estupidez, e agora a mulher dele era viúva e o filho dele ia crescer sem pai, que Deus Todo-Poderoso nos protegesse do Mal que grassa por essa terra selvagem em que a vida vale tão pouco, não é mesmo?
Ele disse essas coisas todas olhando não para mim ou para a minha mãe, mas por sobre as nossas cabeças, para o rancho atrás de nós e a fumaça que saía pela chaminé, e depois se aprumou na sela, endireitou o corpo e só então me encarou, embora não falasse comigo, mas com a minha mãe:
“Mas talvez essa desgraça toda seja pro bem. Talvez a senhora tenha a cabeça no lugar a aceite a minha oferta. A senhora sabe, todo mundo sabe, é uma oferta justa, não, mais do que justa, generosa. A senhora pode pegar esse dinheiro e levar o garoto prum lugar mais tranquilo, lá pros lados do leste, daí ele cresce em paz e quem sabe até não estuda pra virar um doutor ou coisa parecida, não?”
Falou e não esperou resposta, foi logo indo embora com os capangas, cavalgando cada vez mais rápido.
Minha mãe ficou um bom tempo ali junto à cerca, sem se mexer, olhando fixo na direção que o sr. McGee e os capangas tinham tomado, como se adivinhasse o nosso futuro nas formas que a poeira levantada pelos cavalos assumia. Ela não parecia triste ou com raiva. Tinha no rosto a mesma expressão dura, de quem sempre espera pelo pior porque o pior é só o que vem.
Quando falou comigo, não se virou: “O que é que você está esperando pra dar de comer aos porcos? Seu pai se levantar da cova em que meteram ele lá no Kansas e vir aqui te dar uma surra?”.
Dei de comer aos porcos e, depois, quando entrei em casa, a janta já estava na mesa. Minha mãe estava sentada junto do fogão com os braços cruzados e toda encolhida. A lenha crepitava. Pensei que ela estava chorando e fiquei parado, sem saber o que fazer. Eu mesmo vinha sentindo vontade de chorar pelo meu pai, mas era como se não fosse verdade, como se ele fosse entrar pela porta a qualquer momento, todo empoeirado e cheio de histórias da viagem.
Muito ruim não velar, não enterrar, não se despedir. Muito ruim.
A cabeça dela pendia para um lado e, quando vi que não chorava, pensei que talvez estivesse cochilando. Tentei me lembrar de quando a tinha visto cochilar assim, mas não consegui. Acho que nunca vi a minha mãe sequer dormindo, estava sempre acordada, andando de um lado para o outro, cuidando do que quer que fosse. Agora, ela não se mexia.
Talvez estivesse morta.
Ela e meu pai, então. Junto com ele.
Abri a boca para dizer o nome dela, mas o som de um cavalo se aproximando fez com que levantasse a cabeça.
“E agora o quê?”, resmungou descruzando os braços.
Era o sr. Burdette, logo posto para dentro. Ele se sentou com a gente, mas tratou de recusar o jantar dizendo que estava gordo demais. De fato, sua barriga parecia maior a cada dia, como se estivesse esperando uma criança. Aceitou uma caneca de café e contou o que tinha acontecido lá no Kansas, ressaltando não estar presente no momento da briga e confirmando a versão do sr. McGee. Minha mãe, então, perguntou onde é que ele estava quando se deu a confusão.
“Cuidando dos cavalos. A gente revezava. Ele cuidou na noite anterior, então eu devia cuidar naquela noite.”
“Você ficou cuidando dos cavalos e ele foi jogar cartas?”
“Foi, sim, senhora. E, como eu disse, eu não estava lá, ia encontrar com ele quando terminasse os afazeres, mas quem estava disse que foi tudo muito estranho.”
“Estranho? Estranho como?”
O sr. Burdette respirou fundo e olhou para mim como se me visse pela primeira vez. Arregalou os olhos por um segundo, como se estivesse assustado com a minha presença. Na verdade, foi só então que, ao prestar atenção em mim, ele parecia se dar conta do tamanho da desgraça. “Ai meu Deus”, suspirou.
“Estranho como?”, minha mãe repetiu, firme.
“Bem”, ele se recompôs, “o sujeito com quem ele estava jogando, um dos sujeitos, um camarada que depois, bem… esse sujeito era um forasteiro e não parecia boa coisa, não, senhora.”
“Por quê?”
“Ele trapaceava e provocava todo mundo, mas principalmente o nosso amigo. E o pessoal que estava lá, que acompanhou tudo, ficou dizendo depois que ele fazia isso como que de propósito, sabe? Como se tivesse ido lá só pra fazer isso, puxar briga.”
“E o que foi que aconteceu depois?”
“Bem, ele aguentou até onde deu. Eu estava lá fora e só ouvi os tiros.”
“Quantos?”, perguntei.
“Três tiros. Seu pai deu o primeiro e errou. Ele nunca foi pistoleiro, né? Nunca foi bom nisso. Ele deu o primeiro e errou e levou os outros dois tiros.”
As mãos da minha mãe estavam sobre a mesa e tremeram. Ela as escondeu.

2.
Chegou na manhã seguinte.
Se a minha mãe rezasse, eu diria que era uma resposta às preces dela. Mas ela não rezava, nunca.
Eu estava pegando um pouco de lenha e a minha mãe estendia uns lençóis enquanto provavelmente matutava sobre o que o sr. Burdette tinha dito na noite anterior ao se despedir:
“Acho que vocês deviam aceitar a oferta do sr. McGee, pegar o dinheiro e recomeçar a vida noutro lugar.”
Ele falou essas coisas logo depois de colocar a parte que cabia ao meu pai pela venda do gado em cima da mesa e se levantar reclamando da coluna. “Estou velho e gordo demais pra fazer essas viagens.”
A gente só deu pela presença dele quando já se aproximava da cerca. Parou e olhou para mim e depois para a minha mãe. Tinha uns olhos estreitos, como os de um desses chinas que trabalhavam nas ferrovias, e a cabeça redonda. A imundície de suas roupas e de seu corpo denunciava o quanto tinha viajado, e eu não teria ficado surpreso se ele dissesse que vinha desde o outro mar, no leste, cavalgando dia e noite, sem parar.
Como se o conhecesse, como se fosse um parente distante passando para uma visita, minha mãe se aproximou e disse para ele apear, que se lavasse e comesse alguma coisa, o cavalo também precisava de um descanso.
Fui dar de comer ao cavalo enquanto ele a minha mãe ficaram de conversa ali junto do tanque. Vi ele mergulhar a cabeça na água e ouvi qualquer coisa sobre o meu pai e as terras. Minha mãe falava daquele jeito dela, bem direto, sem enrolar, e eu pensei que estivesse oferecendo trabalho ou coisa parecida. Ouvi ela dizendo “vinte dólares” e homem dizendo “não, senhora”.
Foi a única coisa que ouvi dele naquele momento.
Tirou a camisa e jogava água nos ombros e no peito. Minha mãe falava e falava. Acho que nunca a vi falar tanto. Levei o cavalo para os fundos antes que ela me visse por ali e ralhasse comigo.
Quando, duas horas depois, a gente se sentou para almoçar, perguntei qual era o nome dele e de onde vinha e minha mãe mandou que eu deixasse o homem em paz, ele estava cansado e não precisava de mim e das minhas perguntas. Como se não a tivesse ouvido, o homem disse que seu nome era Bronson e vinha lá da Pensilvânia, do Condado de Cambria. Eu não sabia onde ficava a Pensilvânia, mas com certeza ia procurar no mapa que o velho Holmes tinha pregado numa das paredes do armazém na próxima vez que fosse até a cidade.
Eu queria perguntar mais coisas, para onde estava indo, se sabia o que tinha acontecido com o meu pai, o que a minha mãe tinha falado, se ia ficar com a gente e ajudar na lida, se o rifle preso na sela do cavalo era um Winchester, mas fiquei calado, não queria que a mãe ralhasse comigo outra vez.
Quando a refeição estava perto do fim, ouvimos o velho som de cavalos se aproximando. Minha mãe repetiu o que tinha dito na noite anterior: “E agora o quê?”.
Eram os três capangas do sr. McGee.
Minha mãe, o sr. Bronson e eu saímos da casa, o sr. Bronson um pouco atrás, as mãos assim bem junto do corpo: eu não vi quando, ao se levantar da mesa, ele alcançou e recolocou o cinturão com as duas pistolas Colt que tinha deixado no encosto da cadeira, pendurado.
Os três sujeitos olharam para o sr. Bronson assim como se o medissem e depois se entreolharam. Um deles se adiantou e perguntou para a minha mãe, sem tirar os olhos do sr. Bronson, se ela tinha alguma resposta.
“Resposta pra quê?”
“O sr. McGee quer uma resposta”, o sujeito se limitou a dizer.
Minha mãe não disse nada.
O sr. Bronson deu um passo adiante e parou junto dela. Os três sujeitos se entreolharam de novo.
O ar estava parado, sem vento nenhum.
O mesmo sujeito que tinha falado com a minha mãe agora se voltou para o sr. Bronson: “Qual é a sua história?”.
“Nenhuma.”
“O que é que você quer por aqui?”
“Nada.”
“Pra onde é que vai?”
“Oeste.”
“Aqui é o oeste.”
“Mais pro oeste.”
“Não tem mais nada pra lá.”
“Ouvir dizer que tem, sim.”
“Vai se jogar no mar?”
Os três caíram na gargalhada, mas foi um riso nervoso, atravancado.
O sr. Bronson ficou ali parado na frente deles, como se esperasse que os três parassem de rir e fizessem alguma coisa.
Eles pararam de rir.
Os cavalos parece que adivinharam o que estava por vir, porque relincharam bem alto e deram uns passos para trás.
“Vai pra dentro”, minha mãe disse para mim enquanto o sr. Bronson tomava a frente dela com um passo decidido.
Ela veio para junto de mim e me empurrou para dentro de casa e depois entrou também.
“Quer acabar como o marido dela?”, ainda ouvi um dos sujeitos perguntar.
O sr. Bronson não disse mais nada.