Comparar a crise atual com aquela que desencadeou o Golpe de 1964 não é apenas astigmatismo histórico ou, pior, desonestidade intelectual. É algo mais grave. Trai uma certa nostalgia dos coturnos, nostalgia que aflora, em grande parte, naqueles que nunca foram pisoteados por eles. Acenam, desesperados, com a possibilidade do porão, sem perceber que vivemos desde sempre aqui embaixo, na “fosca turvação”; nunca saímos, nem por um segundo. Nunca vimos o mundo lá fora, e até duvidamos (com razão, cegos que somos) da sua existência. Penso também nos que recorrem à expressão “golpe parlamentar”. Em se tratando de um “golpe parlamentar”, o pau-de-arara será acolchoado ou (“o horror, o horror”) apenas metafórico? Antes que arranquem a minha língua, usando um alicate de bico para puxá-la e uma faca meio cega para cortá-la, a lâmina suja do sangue de outrem aquecida num fogareiro vagabundo, poderei gritar que a História é uma puta e somos nós quem a prostituímos por uns trocados? Ou talvez prefiram vazar os meus olhos com os cacos de vidro das janelas que quebraram ao entrar, embora a porta esteja sempre destrancada, no que (um pouco antes) eu tentarei rir: que diferença faz? Já somos cegos, vivemos amontoados neste porão sem distinguir as fezes uns dos outros, enchendo a boca para arrotar palavras tão enormes quanto vazias de conteúdo, mas não de sentido, posto que apontam para a esquerda ou para a direita conforme a mão que gesticula, usadas que são por uns e outros, na verborragia imbecilizada que escorre pelas paredes feito o vômito de uma criança possuída. Mas, além das paredes nas quais esfregamos as nossas mãos sujas de excremento, como se assim fosse possível limpá-las, não há nada à esquerda ou à direita, exceto o que por hábito, burrice ou oportunismo alucinamos. O breu nos descolore os olhos, a imundície nos resseca as mãos, o bodum nos queima as narinas, o choro nos ensurdece de cerúmen, enquanto uns galgam as escadas e tentam alcançar a porta — mas ela foi trancada por fora. Rousseff, Cunha, Lula, Calheiros, Temer etc. são como peças de um jogo de damas que insiste em se fantasiar de xadrez, aqui e ali um cavalo improvisado, uns pelos de vassoura fazendo as vezes de crina e os dentes escancarados enquanto falseia um relincho que ouvimos ao longe, na planície desolada do tabuleiro.
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Imagem: Leviathan, de Bo Bartlett.