A paixão por contar histórias está lá, intacta. É o que mais me apaixona não só n’Os Oito Odiados, mas em toda a filmografia de Quentin Tarantino. São filmes cuja afabilidade para com o espectador é impressionante. Sim, afabilidade. Mesmo com toda a violência, estamos seguros. Estamos do lado do Narrador. Ele se aproxima, senta-se perto da fogueira e diz: “Vê essas sombras? Vou usá-las para te contar uma história”. E usa, conta, e, quando percebemos, já amanheceu. Podemos seguir viagem, transformados por algo que mal compreendemos. Olhamos por sobre os ombros, para trás, querendo ver o Narrador mais uma vez, talvez acenar, mas ele não está lá. Não. Como estaria? O Narrador está sempre à frente.
N’Os Oito Odiados, a estruturação continua sendo literária (na maneira como apresenta história e personagens, nos diálogos que velam e desvelam, no Verbo que restitui vida a um mundo cuja frialdade beira o insuportável). Acho extremamente feliz que a maior parte do filme se passe num único cenário. Estamos presos ali, com os personagens odiosos, enquanto o mundo lá fora é varrido por uma tempestade. O filme fracassaria sem essa sensação de asfixia e exaustão. Como escreveu alguém (referindo-se a Fargo, dos Coen), as dores doem muito mais no inverno.
E, a exemplo do que já fizera em Cães de Aluguel (com quem compartilha o flerte, agora menos explícito, com Rashomon, de Kurosawa), a encenação parece teatral. Parece: a utilização do espaço é nunca menos que soberba. É por isso que Tarantino, grande escritor, é antes de tudo um cineasta, pela maneira como guia o nosso olhar (e, com ele, as nossas vísceras), construindo uma história que vemos se desenrolar (as sombras junto à fogueira), a despeito de toda a maravilhosa verborragia, distinguindo entre (embora eles às vezes coincidam) o mundo do discurso e o (sub)mundo das sombras que se movimentam, inquietas.
O isolamento dos personagens ecoa o isolamento de seus ódios — pela cor do outro, pelas ações e supostos objetivos do outro, pela procedência do outro, pela vitória do outro, pela posição do outro, pelas mentiras e/ou verdades do outro. Cenário e encenação adquirem, também por isso, sua coloração apocalíptica. Um punhado de seres humanos largados no meio do nada, impossibilitados de escapar uns dos outros.
Creio que o filme também fracassaria acaso houvesse escapatória, por mais que um bom número delas seja ensaiado no decorrer da narrativa. Deus colocou todos e cada um deles ali para morrer. Assim como colocou todos e cada um de nós aqui para, também, morrer.
A certa altura, o Narrador se cala e olha para a fogueira. É noite alta. As vozes dos outros ainda ecoam, distanciando-se na escuridão. A pausa (que identifico com o capítulo que encerra o flashback) serve não para dispôr as peças corretamente no tabuleiro, mas para explicitar a solidão irredimível de cada uma delas. O tabuleiro, o cenário, não toma conhecimento delas, de nós. O tabuleiro é de uma crueldade silenciosa, cuja impassibilidade reafirma não a sua própria brutalidade, mas a brutalidade de cada peça, que se movimenta, ataca, mata, morre. É, talvez, a passagem mais avassaladora, e também mais triste. Uma chacina preparando o cenário para a próxima. Elas se sucederão, uma após a outra. Até que o tabuleiro queime.