Um conto (*).
Vim pela estrada de terra, milho de um lado e soja do outro, contornei a casa e estacionei o carro lá atrás. Lucélia e outra menina estendiam roupas no varal, as caras inchadas, vozes roucas, olheiras, deviam ter acordado fazia pouco tempo. Fiquei sentado ali dentro, fingindo procurar alguma coisa no porta-luvas, mas não procurava bosta nenhuma, só queria olhar pra Lucélia mais um pouco, de longe. A estupidez de imaginar com quem ela teria ido na noite anterior, com quantos. Sou estúpido pra caralho. Fico imaginando coisas que não devia. Pensando demais. Eu fingindo procurar alguma coisa no porta-luvas e ela fingindo que não tinha me visto, pendurando uma camiseta branca, as calças de alguém, uma blusa vermelha. Desci, afinal. Pedrão estava sentado numa cadeira, fumava um cigarro, não o tinha visto. Fui até ele e estendi a mão.
— A gente só te esperava à tardezinha — ele disse.
— Eu sei. Acordei cedo. Achei melhor pegar a estrada logo, previsão de chuva.
— Não vai chover, não — ele retrucou.
— A previsão disse que vai.
— Eu não acredito nessas merdas — ele insistiu, depois jogou o cigarro no chão e deixou lá, queimando no cascalho. — Seu quarto é o de sempre.
Ele se levantou e entrou. Voltei ao carro, peguei a mochila no banco traseiro e fui até os dormitórios. O meu era o último. Passei por Lucélia e disse bom-dia.
— Boa tarde — ela respondeu, sorrindo, uma piscadela.
Então você me viu, pensei. É claro que sim. Tomei um banho. Quando saí, ela estava deitada na cama, de bruços. Tinha engordado um pouco. A bunda parecia maior. As roupas dela estavam em cima das minhas.
— Vem logo — disse. — Mas vem com jeitinho. Noite passada foi concorrida.
A gente tinha terminado quando ouvi duas batidinhas na porta. Lucélia cochilava ao meu lado. Eu a cobri, vesti as calças e abri a porta. Era a menina que ajudava Lucélia a pendurar as roupas. Pedrão queria falar comigo. Fechei a porta, tirei as calças, vesti uma cueca limpa, voltei a colocar as calças, depois uma camisa e saí, descalço. Lucélia não se mexeu.
Pedrão estava sentado ao balcão. Não havia mais ninguém no lugar. Ainda era cedo. Sentei ao lado dele.
— Tem uns discos seus ali — ele disse, apontando para a jukebox desligada.
— Eu sei.
— O pessoal ainda gosta de ouvir. De vez em quando, um caminhoneiro, um peão, outro dia foi um PM.
Achei engraçado. — Como assim, um PM? Que música ele colocou?
— Aquela do primeiro disco.
— Qual?
— Sobre o cara que perde a mulher porque é preso, ela foge com outro.
— Ah — eu ri. — Claro, a mulher foge com um policial.
Pedrão também riu. — Quer beber alguma coisa?
Ele não me esperou responder, levantou-se, contornou o balcão, pegou uma Skol litrão no freezer, dois copos. Não disse nada, ficou ali do outro lado do balcão, em pé, esperou que terminássemos aquela primeira garrafa, pegou outra, os copos cheios outra vez.
— Você sabe, eu gosto de você — ele começou.
— Eu sei, sim.
— Nunca te neguei trabalho.
— Eu sei, porra. Eu sei.
— Você vem aqui, canta, o pessoal da região gosta, enche o lugar, bebe, come as meninas.
— É verdade, Pedrão. O lugar sempre lota.
— Desde quando a gente se conhece?
— Desde quando eu era um pica-grossa — respondi.
— Desde quando você lotava lugares bem melhores do que esse — ele complementou.
— Não que tenha alguma coisa errada com esse lugar.
Ele sorriu. — Claro que não. É que as coisas mudam, numa hora você está aqui — ele disse, apontando para o teto —, e noutra hora está aqui — apontou para o chão.
Didático. Podia ter sido professor. Desviei os olhos, tomei um gole amargo de cerveja.
— É a vida — acabei dizendo.
— Se é — ele concordou. — Tive aquela boate em Brasília, uma casa de shows de Goiânia, e agora toco um puteiro na região da estrada de ferro.
Dei outro gole amargo e falei que o importante era seguir em frente. Se é, ele repetiu. Abriu uma terceira garrafa e chegou finalmente ao que interessava:
— O lance é que eu não posso me dar ao luxo de perder a Lucélia e, ao mesmo tempo, também não quero me dar ao luxo de te perder.
— Você não vai perder ninguém — eu disse.
— Vou, sim. Se vocês começam a se gostar e tal. Começam a ter ideias. Ela vai querer sair ou você vai querer tirar ela daqui, ou as duas coisas. Nossa amizade não ia suportar uma merda dessas. Amor é merda.
Ele suspirou.
— O amor é uma bosta — sorri.
— Entende a minha posição?
— Entendo, sim. Claro que entendo. — E eu não estava mentindo, entendia mesmo.
— Quer dizer — ele continuou —, ela é a menina que me dá mais lucro, a mais limpa, a mais tranquila, todo mundo gosta dela, e você, a gente falou disso agorinha mesmo, você vem aqui uma vez por mês, duas até, lota o ambiente, ganha o seu, todo mundo ganha.
— Todo mundo feliz — concordei, balançando a cabeça. — O que você quer que eu faça, Pedrão?
— Desculpa te pedir isso, mas acho que ia ser bom você não comer ela mais.
Virei o copo de cerveja. — Você é quem manda.
— Ainda bem que você sabe disso.
Não deixei que ele enchesse o meu copo outra vez. Saí pela porta dos fundos, a mesma que tinha usado para entrar.
Parei ali na soleira.
As roupas balançavam no varal. Olhei para os meus pés sujos, teria de tomar outro banho.
Voltei ao quarto.
Lucélia estava acordada e vestida, sentada na beira da cama. Contei o que tinha conversado com Pedrão. Ela primeiro sorriu, balançando a cabeça, depois chorou um pouco, sem fazer barulho. O peso que senti no peito foi idêntico ao de quando me prenderam pela primeira vez, por posse, dois míseros papelotes e os caras adorando aquila merda toda. A sensação desgraçada de que algo tinha acabado, de que era o fim de alguma coisa importante, nada vai ser como antes, fim de papo. Fiquei ali parado, as costas apoiadas na parede, as mãos enfiadas nos bolsos das calças, olhando para os meus pés imundos. Queria dizer alguma coisa pra ela, mas não me ocorreu porra nenhuma. Acho que ela esperava que eu dissesse. O peso aqui dentro só aumentando, depois se transformando num buraco, como se tivessem arrancado meus pulmões e, de alguma forma, eu continuasse respirando. Ela esfregou os olhos, depois me encarou. Pensei que fosse dizer alguma coisa, mas continuou calada. Eu cheguei a abrir a boca, mas não saiu nada, nem mesmo um palavrão, ou o nome dela, e depois, relembrando tudo, eu pensei nisso, podia ter dito o nome dela, só o nome, mais nada.
Mas não. Eu não disse nada.
Ela se levantou, esfregava os olhos de novo, e saiu do quarto sem olhar na minha direção.
Deixou a porta aberta ao sair.
…………
(*) Versão revista de um conto originalmente publicado na antologia Assim você me mata (Terracota, 2012), organizada por Claudio Brittes.