Adeus à Linguagem é o mais recente filme(nsaio) de Jean-Luc Godard. Como já fizera em Nossa Música e Filme Socialismo, o cineasta procura instituir um espaço de reflexão no vazio contemporâneo que parece existir entre a ideia e a metáfora, vazio este que habitamos, cada vez mais surdos.
Em Nossa Música, a discussão ética remetia a Lévinas e anunciava a ruína europeia que vislumbramos à distância em Filme Socialismo (sobre o qual escrevi aqui). Em Adeus à Linguagem, Godard recorre a Rilke e literaliza (ou torna cinematográfica e, portanto, visualmente alcançáveis) alguns dos versos mais belos da oitava das Elegias de Duíno (trad.: Dora Ferreira da Silva, Biblioteca Azul, 6ª ed., 2013):
Com todos os seus olhos, a criatura vê o Aberto.
Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha
se oculta em torno do livre caminho.
(…) Há no entanto
esses olhos calmos que o animal levanta,
atravessando-nos com seu mudo olhar.
A isto se chama destino: estar em face
do mundo, eternamente em face.
(…)
E ele tudo vê, puro e inconsciente de si, onde
nos vemos futuro, em tudo se vê
e salvo para sempre.
Há uma referência verbal e outra visual (na figura de um cão) aos versos. Um casal se encontra e se desencontra, enquanto as estações passam e o tal cachorro (“puro e inconsciente de si”) circula, livre inclusive do tempo. O casal se ausenta, antepondo a linguagem ao corpo. Não dispõem da linguagem, mas são dispostos por ela. O cão está salvo de tudo isso; as pessoas “estão nuas”, coisa que ele, naturalmente, é. Ele está “em face do mundo”; o homem e a mulher, como que infensos a ele.
Em vista disso, com seus olhares “revertidos”, eles se debruçam sobre a estrutura intrinsecamente ruidosa da realidade humana. Digressionam sobre “a segunda vitória de Hitler”, a saber, o triunfo hodierno da biopolítica (o termo foulcaultiano não é usado por Godard), a que nos submetemos, quando o Estado se imiscui em todas as esferas da existência e decide sobre cada uma delas. E, ao digressionar, pelo que dizem e não, explicitam o esvaziamento da linguagem por si mesma (daí o “adeus”), tornada um código insípido que, em nosso cotidiano, no máximo sinaliza a impossibilidade de qualquer comunicação real.
Sobre a passagem desorganizada das estações, e em vista dela e de tal desorganização, Godard aponta para o modo como a depauperação da linguagem (ou dos usos que fazemos dela) redunda(m) num empobrecimento da nossa própria relação com o tempo. É como se nós, seres humanos, perdêssemos mais e mais a dimensão interior do tempo, que nos constitui e situa. Vivemos, assim, presos num presente estrangulado, incapazes de alcançar a ideia que nos precede (isto é, somos ou nos tornamos ontologicamente ignorantes) e incompetentes para tecer uma metáfora capaz de aclarar minimamente a nossa condição.
A insistência de Godard em exibir os corpos dos atores diz respeito, também, a essa relação carnal vulgarizada pela inoperância da linguagem: eles fodem e se veem e se tocam, mas não dizem, não ouvem; estão nus, mas não são nus. É uma nudez coberta pelo ruído, massacrada por uma relação surda com o tempo e, por decorrência, com o outro. Restamos, assim, sozinhos, e na mais absoluta miséria — aquela que nem se dá conta da própria condição, posto que tornada incapaz de dizer o próprio nome.