A maior parte dos diálogos de O Lobo de Wall Street é conversa fiada. São quase três horas de duração e os caras falam sobre depilação feminina, estabelecem regras para o uso de anões em confraternizações no escritório (ver imagem acima) e discorrem sobre os benefícios da masturbação e da cocaína (nessa ordem, creio) na profissão que escolheram. O filme é sobre gente fazendo dinheiro, muito dinheiro, a partir do nada e às custas da idiotice alheia. Eles fazem isso retorcendo, contornando ou apenas ignorando as leis do mercado financeiro e usando de muito papo furado. São vendedores, e povoam um mundo que, a rigor, corre velozmente à margem desse em que vivemos e é fundamentalmente constituído por conversa fiada. São marginais. Martin Scorsese está em seu elemento.
O longa é uma adaptação da autobiografia de Jordan Belfort. Scorsese e o roteirista Terence Winter compreendem que Belfort (que faz uma ponta na cena final, apresentando a si mesmo) está nos vendendo, e não meramente contando, a própria história. Assim, Leonardo DiCaprio fala diretamente para a câmera, a cronologia dos acontecimentos e a própria noção dos mesmos são de uma instabilidade tormentosa e tudo é encarado como sintoma de uma só doença, um mesmo vício que se ramifica e se expressa, por assim dizer, de diversos modos.
Como já fizera em Os Bons Companheiros e Cassino, Scorsese devassa o ambiente no qual seus personagens se movimentam como se não houvesse mais nada fora dele. Como Belfort passa algo como noventa por cento do tempo drogado, o próprio filme é contaminado por esse, digamos, estado de espírito. Tudo nele serve para caracterizar e amplificar aquelas sensações. Pegue a ensandecida sequência de Os Bons Companheiros que acompanha um “dia útil” na vida de Henry Hill, trincado e perseguido por helicópteros reais e imaginários, e multiplique por cem.
Belfort, claro, não é paranoico como Hill, mas a questão, aqui, é perceber o enorme talento de Scorsese para compaginar sua arte ao objeto que enfoca. É cinema da imanência, que se serve de todas as técnicas disponíveis para se colocar e ao espectador na pele daquele sujeito. Você vivencia aquilo tudo, desde a euforia até a desolação (a derradeira briga conjugal é particularmente dolorosa, a exemplo das que acontecem em Companheiros e Cassino).
E, terrivelmente engraçado como é, O Lobo de Wall Street oferece algumas das mais insanas e repentinas mudanças de registro de que se tem notícia. Cenas patéticas adquirem ares trágicos na velocidade de um corte seco. A morte de alguém é antecipada, em off, enquanto vemos o sujeito ser carregado por strippers. Um homem completamente drogado literalmente se arrasta até o carro, pois tem de ir para casa e tirar alguém do telefone. A farsa, aqui, está sempre a um passo da desgraça, e o incômodo que isso gera explica as dezenas de defecções que notei na sessão em que estive.
De fato, o incomparável conhecimento técnico de Scorsese possibilita o desenvolvimento amoral e violentamente irônico da narrativa. Estamos com o protagonista, é a voz dele a nos falar quase que o tempo todo, mas, ao mesmo tempo, há um distanciamento mordaz pela escolha do que é mostrado e como. É o tipo de inteligência fílmica que falta, por exemplo, aos paupérrimos Tropa de Elite, onde narrador-personagem e filmes coincidem, burramente, em todos os níveis.
Em Scorsese, e isso desde Caminhos Perigosos (pensem no que Harvey Keitel diz ao adentrar a igreja e, depois, o bar), ocorre não raro uma cisão entre a voz que narra e o que é mostrado, um divórcio que alimenta o filme com ironia, que é a própria gênese da ironia, e exige um posicionamento do espectador para depois problematizar esse mesmo posicionamento. Nem todo mundo consegue arcar com isso, pois é algo que pressupõe um mínimo de distanciamento da pessoa para consigo mesma.
Ironia, autoironia: o filme olha para si e para fora, simultaneamente. O filme olha para você, em vez de apenas se deixar ali, passivo, para ser visto. Ele pede uma postura ativa, de co-construção. Apresenta um mundo ao mesmo tempo em que desconfia dele. Exige que o espectador faça e refaça a pergunta: o que estou vendo? Os frutos materiais da conduta de Belfort são evidentes. Os danos, materiais e não, também, e cada vez mais. O estrago está nas rachaduras. E, de repente, o filme escorre por elas, e nós com ele. Não é agradável, e nos leva a questionar: como estou vendo?
Por essas e outras, O Lobo de Wall Street é mais um exercício de cinema total de um diretor que se mantém alguns passos à frente de seus pares. Ninguém mais (e)leva a gramática cinematográfica a tais extremos, com tamanha fúria, e, ao mesmo tempo, utiliza a palavra com tanta propriedade. Diante de um Scorsese desse tamanho, todo o resto empalidece, ganha a consistência de um vídeo caseiro. E ele disse que está pensando em parar. Tomara que não, e tomara que adote a dieta de Manoel de Oliveira.