::: Terrence Malick atravessa o Atlântico com um corte seco.
::: Amor Pleno ou, conforme prefiro chamar, To the Wonder prossegue com o arvoramento transcendente de A Árvore da Vida, mas sem a carga lutuosa daquele (ainda que uma personagem, aqui, também carregue a perda de um filho). Logo no começo, um padre (Javier Bardem) fala sobre a distinção entre amor humano e amor divino. Malick não quebra essa distinção, mas sugere um chão comum no qual ambas, com esforço, talvez consigam transitar, ainda que momentaneamente.
::: O “amor que nós amamos” é ricamente ilustrado pelas idas e vindas do casal Ben Affleck e Olga Kurylenko. É um conflito quase que ininterrupto no e pelo qual, conforme observa a filha de dez anos dela, sempre parece faltar alguma coisa. É um amor falho, cujo desenrolar doloroso prescinde de palavras: eles falam, mas raramente os ouvimos, ou ouvimos apenas frases soltas, porque Malick sabe que nós sabemos o que foi dito antes e o que será dito a seguir.
::: Acho curioso, para não dizer absurdo, que alguém tenha escrito que, em um filme tão tormentoso, “nada evolui”, e que ele “não produz catarse” porque não tem “tragédia”, constituindo uma “mediocridade disfarçada de soberba”. Não consigo imaginar cineasta mais singelo e humilde do que Malick. Tanto o seu maravilhamento quanto a sua angústia traduzem um sentimento metafísico de pequenez que aproximam o seu cinema de uma experiência religiosa, na mais (agora, sim) plena acepção do termo. A soberba, no caso, está nos olhos vazados de arrogância daquele que, incapaz de experienciar pelo outro um mergulho dessa natureza, rejeita infantilmente o que vê.
::: Dizendo de outro modo, não é porque o espectador é agnóstico ou ateu que ele deve fechar os olhos para a convocação religiosa (mas sempre e por isso mesmo angustiosamente humana) feita pelo cineasta. Fosse assim, ainda não leríamos Agostinho com tanto interesse. A questão, aqui, não é em que você acredita ou não, ou sequer se acredita em alguma coisa, mas, sim, se é capaz ou, melhor dizendo, está disposto a enxergar com os olhos livres o sentimento religioso tão bem expresso pelo outro.
::: É, em suma, uma questão de ser ou não tolerante para com o outro. Em sendo, torna-se possível abraçar um cinema que, a exemplo da vida, compagina maravilhamento absoluto e dor inexorável.
::: O chão comum oferecido por Malick passa ao largo de qualquer tentativa de conversão. Observem que o personagem mais angustiado, metafisicamente, é o padre. Ao mesmo tempo, ele só parece ter algum consolo quando, errando pela cidade, vendo e ouvindo os paroquianos, permite-se entrever e entreouvir D’us nos corpos e vozes dos outros. Da mesma forma, a tormenta afetiva vivida por Affleck e Kurylenko, e, por um breve interlúdio, por Affleck e Rachel McAdams, exige de todos eles algo que nem sempre, quase nunca, parecem dispostos a oferecer: o espaço de um silêncio no qual o outro possa se instalar.
::: De certo modo, o filme nos pede a mesma coisa: o espaço de um silêncio para que se possa instalar. Até porque aquele corte seco atravessa, mas não oblitera o oceano.
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