Ao som de Richard Wagner, Siegfried.
Eu não acreditava nos meus olhos e ouvidos, mas lá estava Quentin Tarantino recorrendo à mitologia nórdica para calçar o seu western-spaghetti Django Livre. É a saga de Siegfried e Brunhilde, transposta ao sul escravagista dos EUA pouco antes da Guerra da Secessão. Antes, e desde o título, está o icônico personagem imortalizado por Franco Nero no Django de Sergio Corbucci (1966, por aí) e, agora, reencarnado em Jamie Foxx. O novo filme é, para o meu gosto, o melhor de seu roteirista e diretor.
Meu olhar, a exemplo do dele, também é afeiçoado ao imaginário de Sergio Leone, Corbucci, Lucio Fulci (sim, ele também dirigiu westerns) e outros. O que esses caras fizeram foi, basicamente, emprestar o gênero faroeste dos norte-americanos e realocá-lo noutro universo, que é o do próprio cinema. Fizeram coisas que trespassam a realidade, é claro, mas que são, antes e acima de qualquer coisa, filmes que se alimentam de filmes.
Leone, por exemplo, não só reprocessou o gênero, mas lhe conferiu um caráter operístico e grandiloquente inigualável. Obras-primas como Três Homens em Conflito e Era Uma Vez no Oeste não são (nem pretendem ser) do tamanho do Velho Oeste, mas, sim, do tamanho da mitologia cinematográfica (e cinefílica) criada por gênios como John Ford e Howard Hawks, mitologia que reprocessam, reinventam, parodiam, homenageiam.
Tarantino, nem precisava dizer, é herdeiro direto desses sujeitos, dos reprocessadores. Inúmeros mal entendidos cercam tudo o que faz, mas o maior deles advém da incompreensão do seu processo criativo. Qualquer idiota sabe que Tarantino usa e abusa de referências cinematográficas, muitas delas relativas a subgêneros dos mais inusitados (como o blaxploitation revisitado em Jackie Brown), mas a questão é que não há gratuidade alguma nisso. Não se trata de um mero rato de videolocadora regurgitando o que viu.
Muito se fala, por exemplo, da “superficialidade” inerente a essa abordagem cinecanibalesca. Há quem se ressinta de que “falta profundidade” a esses filmes. Para início de conversa, a própria noção de “profundidade” é coisa das mais boçais, em se tratando de cinema. Tudo é superfície, e um filme é bom ou ruim na medida em que seu realizador trafega bem ou mal por ela. Óbvio que há filmes mais ou menos densos, introspectivos ou não, graves ou não, mas dizer que um Tarkóvski é mais “profundo” do que um Tarantino não significa absolutamente nada. No que diz respeito a grandes cineastas, há, evidentemente, abordagens distintas, mas as questões colocadas são, grosso modo, as mesmas.
No meu entender, o material humano inadvertidamente alcançado pelos filmes de Tarantino, por mais debochados, tresloucados e absurdos que às vezes sejam, é de uma grandeza incontornável, e o é por estar conscientemente atracado à nossa animalidade. Kill Bill não pede apenas que acompanhemos o percurso vingativo de sua protagonista, mas, acima de tudo, faz com que nos detenhamos por um longo momento a fim de observar o que há de mais vivo ali: o amor dela por quem tentou matá-la. Não é por acaso que dois corações explodem ao final, literalmente e não.
Da mesma forma, Django Livre explora brutalisticamente os meandros de uma organização social das mais perversas, em que seres humanos eram escravizados e literalmente comidos vivos por cães, mas não pede que pensemos a respeito dela — não de imediato, pelo menos. Não enquanto vemos, não enquanto acontece.
A questão, aqui, é sempre o olhar e suas demandas extravagantes. Você vê e sente. Não se nomeia a raiva, o desgraçamento do outro, a busca irrefreável por Brunhilde, nada disso. Coloca-se a caminho e, quando nos damos conta, estamos numa carreira desabalada rumo ao fogo. Óbvio que, terminada a projeção, acaso tudo não passasse disso, de um sôfrego apelo aos sentidos, nada restaria e estaríamos diante de um filme pornográfico.
Neste momento, talvez nos sirva algo que Sergio Augusto de Andrade certa vez escreveu (referindo-se a David Lynch). Assim: não é que Tarantino transforme a arte em pornografia; o que ele faz é algo bem mais subversivo e provocador — ele transforma a pornografia em arte. E não só porque a pornografia é coisa nossa, humana ao extremo, mas também porque ele tem consciência daquilo que expus acima sobre a superficialidade. À superfície dos corpos, destroçados ou em processo de destroçamento, ele sobrepõe a superfície do celuloide. Ele recobre a miséria do real com a precariedade do cinema e, com isso, ressalta e ironiza o que ambas têm de melhor e de pior.
Não há gratuidade. Há um entendimento (agora, sim) profundo da nossa condição. Estamos e somos aí para morrer, coisa que até Heidegger sabia. Já escrevi em diversas ocasiões sobre como há uma liberdade tremenda nisso, em ter consciência disso. Liberdade que detona quaisquer objeções politicamente (ou hipstericamente) corretas porque se coloca não à frente, mas atrás delas.
(Tarantino parece estar dizendo o tempo todo: You’re overthinking, asshole! Just watch it!)
O que se vê, então, em Django Livre? O que se vê é um escravo liberto por um caçador de recompensas saindo à caça dos “donos” da mulher e a muitíssimo bem humorada orgia de violência decorrente disso. É o que é. Um Siegfried negro solapando uma plantation sulista, algo como o fogo antes do fogo (pois a guerra se avizinha).
A consequente e muitas vezes compassada construção de diálogos e situações segue impecável. É sempre um prazer sentar e ouvir qualquer personagem de Tarantino papear. O humor do cineasta, aliás, nunca esteve tão afiado: a longa discussão entre membros de um arremedo anacrônico da Ku Klux Klan sobre a pertinência de se usar ou não os desconfortáveis capuzes é de um absurdo hilariante.
O fotógrafo Robert Richardson segue utilizando seus focos de luz estourada em tomadas internas, mas isso não chega a irritar. Pelo contrário: em cena passada num saloon, das melhores do filme, quando Django e seu libertador acertam os ponteiros (e este último ainda encontra tempo para trabalhar), senti como se assistisse a uma aliança engendrada nos infernos. Há sombras, muitas sombras, mas a luz está ali para não deixar dúvidas: o fogo caminha com aqueles dois. Amém.
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